Quem pode conhecer o próprio passado e quais histórias não estão sendo contadas
Você conhece a história da sua família? Dos seus avós? Bisavós? De parentes mais distantes?
Decidi começar a edição 33 com esta pergunta porque a releitura de O Tempo e O Vento me trouxe de volta um pensamento que já estava nas minhas reflexões há muito tempo e que eu já vi algumas vezes na internet: o passado de nossas famílias.
O Tempo e O Vento narra durante 200 anos a história de várias gerações de uma família gaúcha e mistura ficção com realidade para contar a história da colonização do Rio Grande do Sul. Desde o século XVIII até 1945, acompanhamos personagens apaixonantes e odiosos numa história de amores, obsessões, rivalidades políticas e guerras dos mais diversos tipos, em três livros (algumas vezes publicados em três volumes, outras vezes em sete).
Fiquei apaixonada por essa história quando li pela primeira vez, aos 16 anos, e embora esteja revisitando com olhar mais crítico hoje em dia, continuo apaixonada. E alguns dias atrás, cheguei a um trecho específico que me fez pensar mais uma vez sobre minha família, sobre passado e sobre o que significa ter conhecimento e registros sobre o passado da própria família, especialmente sobre os parentes que morreram antes de termos nascido.
Romances sobre sagas familiares, que acompanham avós, pais e filhos ao longo do tempo são um tipo de história que eu gosto muito de ler. Minha favorita é O Tempo e O Vento, mas também posso citar como exemplos A casa dos espíritos, Leite Derramado e Cem anos de solidão, além de vários livros que ainda estão na lista de futuras leituras, como O som e a fúria, O caminho de Casa, Pátria, A mãe da mãe da sua mãe e suas filhas e Pachinko.
Livros com esse tipo de história trabalham com temas como amor, mágoas, mudanças econêmicas, sociais, históricas e políticas e o quase onipresente questionamento: Por que permanecemos junto de pessoas que nem sempre amamos, que nem sempre nos fazem bem, nem sempre nos respeitam ou às nossas escolhas, mas com quem dividimos os genes e/ou o sobrenome? Essa pergunta me afeta muito, porque, bem... Eu já me vi no dilema de cortar ou não cortar relações com uma pessoa da minha família que não respeita minha existência. E ainda não tenho uma resposta, nem para a pergunta, e nem para o meu dilema.
Estou no último livro de O Tempo e O Vento, o terceiro volume de O Arquipélago, onde vemos a decadência da família Terra-Cambará em uma desconfortável "reunião de família" causada pelos problemas cardíacos do Dr. Rodrigo, o patriarca que está a beira da morte e é confrontado com a oposição ideológica e política de um dos filhos (que é comunista), com a mágoa da esposa traída, com os julgamentos e bajulações da população de sua cidade natal e com a proposital oposição de valores e comportamentos do filho mais velho, Floriano.
Floriano Cambará é meu personagem favorito dessa fase da história porque é o oposto do pai, embora eu muitas vezes me irrite com a inércia e a falta de opiniões dele, e também porque é escritor. É aí que minha preferência fica óbvia. No trecho de seu ponto de vista que li na quinta-feira passada, Floriano tomou a decisão de escrever um romance sobre a história de sua família (a famosa autoficção!). Narrado em forma de diário, o capítulo contém anotações sobre as "investigações" do passado que Floriano faz, conversando com sua tia-avó Maria Valéria e vendo pela primeira vez alguns objetos que pertenceram a seus antepassados. Floriano também tem com um amigo uma conversa maravilhosa sobre o tal romance, que é um prato cheio para quem também escreve.
E reler isso me fez lembrar que na minha primeira leitura de O Tempo e O Vento, eu também tive vontade de conhecer melhor o passado da minha família, mas logo me deparei com uma impossibilidade: a lembrança de que minha avó materna é negra, e meu avo paterno também, e que os avós deles devem ter sido pessoas escravizadas, sabe-se lá onde, sabe-se lá quais eram seus nomes e os nomes de seus pais e de seus avós... A lembrança de que nasci em Brasília e que a capital do país não surgiu do nada no meio do Cerrado, e que as pessoas que hoje vivem nela tiveram que vir de algum lugar, e que coisas podem ter se perdido no meio do caminho. Enfim, não é fácil ter registros do passado se você é uma pessoa negra de uma família pobre, com avós que migraram de outros estados do Brasil em busca de uma vida melhor.
O pouco que consegui resgatar foi com base nas conversas que ouvi entre minha avó Hilda e minha mãe, ou entre ela e minhas tias. Alguns anos atrás, transformei essa coleção de fragmentos orais em uma crônica com o título Quando Dona Hilda fala, que está publicada no meu Medium. E mesmo que esteja satisfeita com isso, eu acho que nunca poderia ir mais longe, saber quem e o que veio antes de Dona Hilda, porque, além da memória dela, não deve restar mais nada desse passado.
Aí é que eu chego na questão que já vi rondar alguns debates na internet: quanto uma pessoa negra pode conhecer do passado de sua família? Quem se interessaria em registrar e preservar para o futuro as histórias daqueles que serviram com o próprio sangue para a construção e manutenção dos privilégios da elite de um país? Afinal: saber como viveram e o que fizeram várias gerações passadas da sua família não é um privilégio de raça e de classe?
Eu não tenho respostas para essas perguntas; pelo contrário, elas me fazem questionar mais: que tipo de histórias (ficcionais ou da vida real) não estão sendo contadas só porque as pessoas que as viveram ou criaram não têm os meios para contá-las?
Isso tudo NÃO FOI uma tentativa de te convencer a ler O Tempo e O Vento, mas se você ficou com vontade, quero deixar um aviso: você vai passar raiva! Muita raiva! Se quiser encarar os duzentos anos de história dos Terra-Cambará, você vai encontrar colonialismo, racismo, machismo, masculinidade (muito) tóxica, genocídio indígena, representações bem ruins de pessoas negras e indígenas, violência sexual, discussões chatíssimas sobre política, guerras e mais guerras cujas motivações ou quem está de qual lado são impossíveis de lembrar, referências a personalidades e fatos históricos que talvez você nunca tenha estudado, personagens que são verdadeiro LIXO HUMANO, um homem que tem fantasias sexuais com uma mulher que se veste de forma infantilizada, um intelectual admirador de fascistas, surgimento de núcleos nazistas e integralistas, e por aí vai...
Mas também vai encontrar uma prosa sensível e muito bonita, personagens inesquecíveis, acontecimentos dramáticos de arrepiar os cabelos, uma mulher que arma o casamento por interesse do próprio filho para reconquistar (sem uso de violência) as terras que foram de seu pai; e a constante sensação de que, mesmo quando nos esforçamos pelo contrário, acabamos sendo exatamente como nossos pais. Fica a dica.
Não contei na edição passada, mas há algumas semanas consegui pensar em um título que tem a ver com a história. É uma oração subordinada, o que significa que subentende uma oração anterior. No meu ponto de vista, a frase que escolhi tem tudo a ver com a relação das minhas personagens e com o que elas vão viver. Não sei se vou manter a escolha até a publicação, mas por enquanto estou gostando muito dela.
Continuo no capítulo 9. Por causa da edição do conto de natal, passei alguns dias sem escrever, e quando voltei, mesmo descansada, não consegui avançar muito. Acontece que eu me deparei com a falta de referências para escrever o plot principal de uma das minhas protagonistas. Desde quando comecei a planejar a história, eu já sabia que precisaria estudar e ler alguns livros específicos para conseguir desenvolver isso. Mas o que eu fiz? Não estudei nada! Agora, estou com dificuldades pela falta de embasamento e me sentindo o próprio meme do Pikachu surpreso.
Escritora surta após descobrir que precisa estudar para escrever bem.
Acontece que minha protagonista é uma mulher negra de pele clara em uma família miscigenada. Por ter traços finos, cabelo cacheado e a pele não muito escura, ela teve sua negritude negada por muito tempo, até acontecer algo que a fez perceber que sim, ela é negra. A partir daí, ela precisa se reconciliar com suas lembranças e com algumas dores antigas e novas.
Eu nunca li nada com um plot parecido e não tenho nenhuma referência além da minha própria vida. Até que, na terça-feira, assisti no YouTube a um vídeo do canal Papo de Preta em que Maristela Rosa, uma das responsáveis pelo canal, fala sobre sua dissertação de mestrado em que ela estudou a representação de mulheres negras na mídia. O vídeo me deixou curiosa, eu cliquei no link para acessar o trabalho publicado e acabei lendo um capítulo sobre identidade e sobre como pessoas se identificam enquanto parte de um grupo.
Foi interessante, ressoou muito em mim e me fez lembrar dos livros que eu me propus a ler mais de um ano atrás e só fui adiando. Entre eles, estão Tornar-se Negro, de Neusa Santos Souza, Quem tem medo do feminismo negro e Lugar de Fala, ambos de Djamila Ribeiro, e Quando me descobri negra, de Bianca Santana. Quero fazer essas leituras no mês que vem, aproveitando que em novembro eu participo do Bingo Lit Negra lendo apenas livros com autoria e protagonismo negro. E espero, com isso, desenvolver bem o meu romance.
Se você se interessou pelo assunto, deixo aqui o link para o vídeo do canal Papo de Preta e o link para a dissertação de Maristela Rosa.
- Li um texto maravilhoso do Querido Clássico sobre o apagamento da literatura gótica brasileira. Você acha que lugares e atmosferas sombrias não combinam com o Brasil? Que não temos histórias clássicas de terror ou fantasia? Não é bem assim! Havia autores brasileiros escrevendo literatura gótica em pleno século XIX, e lembrar disso me deu até vontade de reler Noite na Taverna. Leia o texto para entender melhor.
- Assisti novamente ao filme Garota Infernal - aquele em que Megan Fox é uma súcubo e seduz homens para comê-los (no sentido literal) - graças ao novo hype que esse filme ganhou após ser reinterpretado pelo público. O podcast Esqueletos no Armário têm uma thread muito boa sobre como o marketing desse filme foi COMPLETAMENTE ERRADO na época do lançamento, e foi isso que me fez ter vontade de assistir - isso e um vídeo da cena de Megan Fox e Amanda Seyfried se beijando, que me deixa TRANSTORNADA toda vez que eu lembro!
- Dica dupla de filmes brasileiros: Reflexões de um liquidificador é uma mistura de comédia com thriller e conta com a narração de um velho eletrodoméstico para nos contar como uma aparentemente inofensiva dona de casa mata o marido após descobrir uma traição. Já O animal cordial é um suspense em que assaltantes fazem o dono e os funcionários de um restaurante de reféns e as coisas ficam um pouco... fora de controle. No meio disso, ódio de classe, xenofobia e lgbtfobia tornam a situação ainda pior. Ambos me surpreenderam muito e estão disponíveis na Netflix. O primeiro, porém, estará lá apenas até o dia 31.
- A publicação seriada de Tratado Sobre Tempestades e Outros Fenômenos Extraordinários - ou, como o fandom já começou a chamar, "Tratado sobre Ivalena" - foi concluída e o fim da história conseguiu ACABAR comigo! Felizmente, já foi anunciada uma continuação prevista para 2022, o que significa que não vou passar muito tempo sem meu trisal favorito. Mas até lá, a Noveletter já anunciou a publicação seriada de Coração Mal-Assombrado, de Gih Alves, uma história com personagens sáficas e fantasmas. Por causa disso, vou continuar assinando a newsletter. Se você se interessou, conheça o projeto no Catarse ou assine a newsletter.
- Ouvi outro álbum de jazz e fiquei apaixonada! Minha dica musical dessa vez é Good Night, Good Luck, de Dianne Reeves. Ouça pelo Spotify.
Espero que tenham gostado!
Um abraço,
Lethycia
Elas Falam Por Si
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