Cozinhar é afeto - Uma mulher que escreve #41
A cozinheira que contamina a comida com suas emoções, culturas latino-americanas, realismo mágico e minha relação com a cozinha.
Por Lethycia Dias | Edição 41
Achei que essa seria uma daquelas semanas em que eu não conseguiria preparar a news a tempo de enviar para vocês. Fui um zumbi durante o fim de semana, embora tenha dormido a noite inteira nesses curtos dias de descanso que o capitalismo nos dá. Mas encontrei uma brecha na correria de terça-feira e aqui estamos. Esta é a edição n° 41 de Uma mulher que escreve e recomendo não ler de estômago vazio, pois hoje falaremos muito de comida. E vou contar essa história a partir de...
Um filme que assisti porque o pôster é bonito
Quando assinei a Netflix, no fim de 2015, o catálogo era bem diferente do que é hoje. Havia bem menos produções próprias, as séries tinham outro perfil, e a variedade de filmes de outros estúdios era bem maior e mais duradoura. Fui uma criança com TV a cabo, mas desde que minha família se mudou para Goiânia, num padrão de vida bem mais modesto do que estava acostumada, tive que me adaptar à tediosa realidade da TV aberta brasileira. Então, quando pude passar a pagar pelo meu primeiro serviço de streaming, eu me deparei com uma coisa incrível: a possibilidade de assistir a filmes de todos os tipos, famosos ou desconhecidos, na hora que eu quisesse. A gente sabe que na verdade não é bem assim, mas para a Lethycia de anos atrás, foi isso que pareceu.
Nos meus primeiros meses de assinatura, aproveitei ao máximo para assistir tudo que me interessava e que eu não podia consumir antes. Um dos primeiros filmes que vi nessa época foi Psicose (1960), só porque eu queria ver a Marion Crane gritando para o vulto com a faca no banheiro.
Também nessa época, assisti a um filme mexicano sobre uma mulher que cozinhava pratos deliciosos capazes de "contaminar" as pessoas que comiam sua comida com as emoções que ela tinha no momento do preparo. Como água para chocolate (1992) me chamou a atenção, em primeiro lugar, por seu pôster, e me encantou de um jeito que poucos filmes tinham feito até então. Infelizmente, parece que agora só está disponível no Claro Now.
Estou contando essa história porque, recentemente, terminei de ler o livro que inspirou esse filme. É escrito por Laura Esquivel, e tive acesso a ele porque está disponível no Kindle Unlimited. É uma história de realismo mágico, um gênero do qual eu gosto muito e que adoraria escrever um dia.
Eu já esperava gostar, mas a relação que tive com o livro foi um tanto diferente da que tive com o filme. Nele, cada capítulo narra uma diferente ocasião vivenciada pela família De La Garza, girando em torno dos pratos preparados por Tita, a protagonista, sob o ponto de vista dela. Lemos a receita de cada prato, vemos Tita planejando o que preparar e para quantas pessoas, com uma ou outra dica sobre como evitar que alguma coisa fique errada. E, em pontos marcantes do livro, vemos a tristeza, a alegria ou o amor de Tita causando sensações e acontecimentos fantásticos no rancho em que ela vive e nas pessoas que o frequentam.
Mas não era só isso. Era como se houvesse um outro ingrediente, que dava um gosto especial para a leitura e fazia com que eu me deleitasse a capa nova cena, mesmo não conhecendo nenhum dos pratos mencionados ou não gostando dos ingredientes de vários deles. Pimentões, por exemplo, ou chiles, em espanhol, eram muito usados, e eu odeio pimentão. Acho que o negócio que me pegou era a forma como a comida fazia parte de tudo nas vidas daquelas pessoas: era não apenas uma necessidade física dos personagens, mas um elemento agregador das relações da família, das relações de amizade e uma forma de manifestação de sonhos, pensamentos, afetos e desejos. E eu acho que isso tem tudo a ver com culturas e povos latinoamericanos. Fonte: vozes da minha cabeça.
Em certa parte do livro, por exemplo, Tita é hospedada na casa de John Brown, o médico de sua família, que como o nome indica, é estadunidense. A comida da casa de John Brown, preparada por uma empregada também estadunidense, não tem gosto e Tita não tem apetite para comê-la. E a narradora do livro, sobrinha-neta de Tita, nos diz várias vezes que as receitas que Tita cozinha são o produto de uma tradição oral milenar mantida por mulheres que viviam no México desde a colonização hispânica, preservadas somente porque Tita decidiu anotá-las todas em um livro para que não se perdessem, pois temia não poder passá-las adiante. As refeições na casa de John são frias e sem emoção, enquanto na casa dos La Garza, são sempre um reflexo do que se passa no íntimo de seus moradores.
Acho que nós, latino-americanos, somos diferentes de europeus e de estadunidenses, nesse sentido. Somos barulhentos, formamos famílias enormes e o ato de nos reunirmos para comer, para nós, tem um sentido muito maior do que apenas comer. E encontrar isso num livro em que coisas absurdas acontecem e são tratadas com a maior naturalidade - como manda o realismo mágico - e em que termos que não têm correspondência no Português são mantidos em Espanhol, dando uma sensação maravilhosa de todos falam portunhol, me deu uma felicidade imensa.
Eu sou apenas uma moça latinoamericana, sem parentes importantes, tenho 25 anos de anos de sonho e de sangue e de América do Sul, e por força desse destino, encontrar essas similaridades com nossos "vizinhos" hispanoablantes me deixa meio emocionada. Não sei explicar.
Só sei que o livro de Laura Esquivel reavivou minha vontade de escrever realismo mágico. Conheci o gênero ainda adolescente quando tive que ler Crônica de uma morte anunciada para o curso de espanhol, e me encantei mais ainda quando li Cem anos de solidão e A Casa dos Espíritos. Infelizmente, não tenho sequer ideias para uma história assim e nem me acho capaz de escrever uma. É só um sonho de leitora emocionada.
Mas Como água para chocolate também me lembrou de uma coisa em que acredito:
Comida é afeto
Não se com vocês é assim, mas eu tenho algumas lembranças bem fortes relacionadas a gosto e cheiros de comida. O amendoim salgado vendido em cones de papel na Rodoviária do Plano Piloto em Brasília, quando minha mãe me levava para a casa da minha avó nos sábados durante a minha infância; a gelatina rosada feita por uma tia do meu pai, que tinha um gosto e uma textura especiais e cuja receita minha mãe nunca aprendeu; os biscoitos Passatempo que minha avó paterna me oferecia dentro de uma caixinha de metal bonita quando a visitávamos; o milho colhido pelo meu avô materno na chácara da família, que minha mãe cozinhava em espigas e até hoje parece ser o melhor do mundo.
Não sei se existe algo científico que explique isso, mas quando me lembro dessas coisas, eu vejo o quanto a comida faz parte das nossas memórias afetivas. É por isso que, em Como Salvar uma Ceia de Natal, a saudade que Débora sente da mãe é simbolizada pela vontade de comer rabanada, que ela associa à felicidade da vida familiar. E é por isso que gostei tanto de Como água para chocolate.
Não sou nada de mais como cozinheira; na verdade, nunca achei que um dia cozinharia bem, porque aprendi a cozinhar na marra, aos 14 anos, quando todas as responsabilidades de uma pessoa adulta caíram sobre as minhas costas. Meu primeiro macarrão foi feito em grande quantidade, sem sal e ficou grudento; eu e meu irmão comemos isso durante uma semana porque, no código moral dos meus pais, desperdiçar comida é um crime contra a humanidade.
Minha relação com a cozinha foi de verdadeiro ódio até alguns anos atrás, quando comecei a finalmente me reconciliar com o preparo da comida e a descobrir algum prazer em cozinhar. Até escrevi uma crônica sobre isso quando aprendi a fazer amendoim doce. No texto, publicado no meu Medium, falo também da vontade de aprender a fazer canjica como as mulheres da minha família fazem - e, ano passado, eu aprendi.
Também ano passado, morei sozinha durante quatro meses. Nesse período, não houve um só dia em que eu tenha comido uma refeição ruim por falta de ingredientes ou preguiça de preparar. Enquanto me equilibrava para pagar todas as contas, acabei descobrindo uma felicidade inédita em cozinhar algo novo pela primeira vez e em realizar algo impensável para a Lethycia de dez anos atrás: ver o almoço e a janta ficarem com o mesmo gosto de quando eram preparados pela minha mãe. Isso não tem preço.
Recomendações
Minha resenha de Como água para chocolate foi postada ontem. Nela, conto de forma resumida a mesma experiência que trouxe aqui. Clique para ler.
Vanessa Passos é a vencedora do 6° Prêmio Kindle de Literatura, com seu romance A filha primitiva. Eu acompanho Vanessa pelo Instagram e estava torcendo muito por ela. Seu livro foi uma das minhas melhores leituras do ano passado. Conheça aqui.
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Espero que tenham gostado da edição e das dicas.
Um abraço,
Lethycia