O elixir do Dr. Jekyll para separar o artista da obra - Uma mulher que escreve #46
Reflexões sobre uma coisa na qual eu não acredito - e mesmo assim, tentei colocar em prática.
Por Lethycia Dias | Edição 46
Olá, pessoas que leem!
Esccrevi a maior parte deta news na manhã de segunda-feira e já aceitei que o tempo em que eu conseguia escrever no fim de semana já passou. Hoje teremos apenas um assunto além das atualizações habituais e vai ser um pouquinho comprido, então vamos começar logo.
Artistas babacas e suas obras que nós gostamos
No fim de semana retrasado, fiquei pensando muito sobre isso. Algumas pessoas consideram um tema polêmico, mas eu não. Pra mim, não é possível separar um do outro. Quando fico sabendo de uma babaquice dita ou feita por alguém de cuja obra eu gosto ou tenho vontade de consumir, é como se aquela obra automaticamente ganhasse um cheirinho de azedo. Fica difícil de encarar, se eu ainda não li, ouvi ou assisti, e fica chato lembrar que já gostei.
Não, não vou falar de J. K. Rowling, embora quase sempre seja ela que resusscita o assunto na internet. Nem de Mario Vargas Llosa, embora ele tenha falado uma bobagem na semana passada - eu já estava pensando em escrever sobre isso antes de ele abrir a boca pra comentar as eleições de um país onde ele nem vive sem que ninguém tenha perguntado. Deem um Google se quiserem. Eu tenho vontade de xingar quando lembro.
A questão é que, de alguma forma, uma parte das pessoas acha que é possível fazer isso. Fingir que uma pessoa no mundo das artes não tem umas opiniões meio idiotas, que não se comporta de forma inadequada com colegas de trabalho ou mesmo que essa pessoa não cometeu crimes só porque é famosa ou o trabalho dela é (considerado) bom. E "ser bom" às vezes é questionável, porque desde os clássicos da literatura, a gente vive consumindo coisas só porque outras pessoas disseram pra gente que são boas ou importantes.
Eu não sei fazer isso. Não acho que seja possível fazer isso. Minha primeira decepção com artistas babacas aconteceu quando eu soube que Rachel de Queiroz apoiava a ditadura militar. Eu amo esse vídeo em que o Caio Fernando Abreu declara estar constrangido por prestar homenagens a ela, no programa Roda Viva, em 1991. Desde então, nunca mais li nem reli qualquer outra coisa escrita por ela.
Com o passar do tempo, vieram outras decepções, eu soube de outras babaquices e desisti de gastar dinheiro com certas coisas ou falar (bem) de certas pessoas. Perdi toda a vontade de ler Elizabeth Bishop, uma poeta estadunidense que conheci assistindo ao filme Flores Raras (2013), quando descobri que ela compartilhava da opinião de Rachel de Queiroz. Não li e nem quero ler nada de H. P. Lovecraft depois de saber o que ele achava de qualquer pessoa que não fosse um homem branco e cristão. E quando terminei de ler a trilogia de O Senhor dos Anéis e decidi assistir aos filmes em sequência, fiquei com verdadeira raiva lendo o nome de Harvey Weinstein creditado como produtor executivo. E eu nem costumo ler créditos, então nunca odiei tanto ter prestado atenção em um pedacinho deles.
Não estou aqui pra dizer o que você deve fazer ou não com os livros, filmes, seriados, músicas, peças de teatro, e qualquer outra coisa feita por essas e outras pessoas. Eu mesma não sei o que fazer algumas vezes. O assunto "Artista e obra" tem muitas nuances e essa é só mais uma delas. O que eu queria abordar de verdade é como algumas pessoas preferem fingir que não sabem, que não se importam ou que uma coisa não tem nada a ver com a outra só pra continuar sendo fãs de suas coisas favoritas sem sentir culpa.
Eu acredito que às vezes, uma coisa tem muito a ver com a outra. Muitos autores - e aqui eu vou falar especificamente de literatura, porque é a forma de arte que eu entendo melhor - escrevem sobre aquilo que acreditam, colocam suas convicções e crenças nos próprios livros. E isso pode acontecer de forma proposital ou inconsciente. Então, como fazer de conta que eu não sei que um livro muito bem escrito, com uma história emocionante, não foi escrito por uma pessoa que faz declarações xenofóbicas, machistas, racistas, e/ou fascistas?
Parece que a galera da separação acredita mesmo que é possível colocar num lado a obra linda, maravilhosa, emocionante, que construiu amizades e conquistou legiões de fãs; e no outro, a pessoa podre que fez aquilo. Como se o fã tomasse a poção do Dr. Jekyll, de O médico e o monstro, para separar o lado bom e o lado ruim de um artista, assim como o personagem do livro pretendia fazer.
Sinto muito se dei um spoiler de um livro publicado há mais de 100 anos e muitas vezes referenciado na cultura pop. Como diz a Lisbela, de Lisbela e o Prisioneiro (2003) - que também tem uma referência a essa história - o que importa não é saber o que acontece, mas quando e como acontece.
Tudo que eu disse até aqui é só a minha forma de entender o assunto e não uma regra. Mas o gatilho que me levou a querer discutir esse tema foi que outro dia, me peguei tentando separar o artista da obra, mesmo sem acreditar que posso fazer isso.
Não se preocupem, a pessoa em questão não faz declarações de ódio contra nenhum grupo e também não cometeu nenhum crime (que eu saiba). Também não é uma pessoa famosa, então não é como se o mundo estivesse preocupado com o que ela diz e faz. É só uma pessoa chata! Quer dizer: uma pessoa que eu acho chata. E que vive aparecendo na minha timeline, mesmo que eu não seja uma seguidora dela, e de vez em quando me irrita com opiniões e comportamentos online que eu nem queria ver!
E mesmo assim, lá estava eu, há semanas lendo um livro que essa pessoa disponibiliza gratuitamente. E tentando justificar pra mim mesma: mas a história parece tão boa! Mas a capa é tão bonita! Mas é tão diferente do que estou acostumada a ler! Mas consumir de graça (legalmente) não é igual financiar um projeto... Mas..., mas..., mas.
E me peguei pensando: eu não deveria parar de ler esse livro? Porque afinal, foi o que eu fiz com os livros de outros autores babacas, não é mesmo? Por que deveria continuar lendo isso? Eu não tenho respostas pra essa pergunta e nem acho que ela é fácil de responder. Só achei que era um ângulo interessante pra escrever sobre um assunto que, mesmo que eu já tenha opinião formada, ainda é difícil de lidar. E se é assim pra mim, que penso nisso há muito tempo, imagina pra quem de repente vê os seus favoritos sendo "cancelados" na internet?
Me conta como é pra você!
Li, ouvi e assisti
Continuo lendo A criação do patriarcado. Como eu já tinha entendido duas semanas atrás, vai ser uma leitura lenta. Eu só pego o livro nos fins de semana ou quando perco o sono no meio da noite. E mesmo assim, consigo acompanhar a linha de raciocínio e continuo achando as hipóteses da autora interessantes.
Comecei a ler, em dias seguidos, O sol é para todos e Exorcismos, amores e uma dose de blues. O primeiro esteve na minha lista de leituras desejadas por muito tempo, por motivos óbvios. Eu tinha medo de ter deixado passar o tempo em que teria gostado de ler esse livro, mas me envolvi pela narrativa de um jeito inesperado e estou gostando bastante. Já com Exorcismos, a vontade de ler existia desde quando li Ninguém nasce herói e fui procurar por mais livros do autor. Eric Novello acabou se tornando um dos meus autores brasileiros contemporâneos favoritos, então estou lendo com bastante expectativa e curiosidade.
Comecei a ouvir o podcast 451 MHz, da revista Quatro Cinco Um, que conheci porque vi alguém compartilhando nas redes uma reprise do episódio sobre Lygia Fagundes Telles (é excelente!). Comecei a ouvir desde o início e já estou apaixonada.
No domingo, assisti Thelma & Louise (1991), e esse era um filme que eu esperei muito tempo pra assistir! Pra quem não conhece, é a história de duas amigas fazendo uma viagem juntas que desanda quando elas encontram um cara que não entende o significado de "não". Tentando se proteger, as duas acabam cometendo uma série de crimes e sendo perseguidas pela polícia. Esse filme já esteve no catálogo da Netflix, mas eu sempre deixava pra ver depois. Vi uma parte ano passado numa visita à casa do meu pai, que tem TV a cabo, mas perdi o início. Recementemente, o filme entrou no Prime Video e foi por lá que eu pude assistir inteiro. É incrível e recomendo muito!
Uma recomendação
A feira e-cêntrica de publicações independentes, organizada pela NegaLilu Editora, está de volta a Goiânia, marcada para os dias 11 e 12 de junho, na Vila Vultural Cora Coralina. Também haverá atividades virtuais do dia 06 ao dia 11 de junho. Gostei muito das duas edições anteriores do evento em que estive, e é sempre bom encontrar outras pessoas interessadas em livros, zines e artes gráficas. Confira a programação pelo site.
Eu fico por aqui mesmo!
Um abraço,
Lethycia