Temas de escrita, A Mulher do Fim do Mundo, Milton Nascimento e Grande Sertão - Uma mulher que escreve #40
Percebi que escrevo sobre meus medos, me despedi de uma grande referência enquanto mulher negra e me emocionei com as referências literárias em músicas de Milton Nascimento.
Por Lethycia Dias | Edição 40
Olá, pessoas que leem! Sei que vocês estão lendo isso numa quarta-feira, como é tradição desde que comecei a news, mas estou escrevendo num sábado, no dia do meu aniversário. Não está sendo um dia muito legal. Continuo tossindo, como consequência da Covid; sinto falta das minhas melhores amigas do Ensino Médio; e a falta de terapia voltou a me assombrar mais uma vez com pensamentos que prefiro evitar. O remédio que encontrei foi escrever no meu diário e cumprir minhas tarefas, então, aqui estou. Sejam bem-vindes à edição nº 40 de Uma mulher que escreve.
E vamos aos assuntos de hoje:
Temas frequentes de escrita
No dia 19 de janeiro, a Revista Perpétua postou um tweet perguntando a leitores que tipo de história costumam consumir, e a escritores, que tipo de história costumam contar. Isso chegou à minha timeline e eu não precisei pensar muito para responder o seguinte:
E fiquei muito tempo pensando nessa resposta, que foi tão espontânea e tão verdadeira.
O romance que estive escrevendo e precisei interromper é sobre os temas 1, 2, 3 e 4; Como Salvar uma Ceia de Natal é sobre os temas 1, 4 e 5; enquanto o novo conto que estou escrevendo carrega todos os temas acima. E isso não saiu da minha cabeça durante os dias seguintes...
Não cheguei a explicar no tweet, porque sei que não devo explicações a ninguém, mas Como Salvar uma Ceia de Natal - uma história escrita entre dezembro de 2020 e fevereiro de 2021 sobre uma filha que fugiu de casa e passou anos sem falar com a mãe - parece uma forma de falar sobre o meu maior medo de pessoa LGBT, que, antes de eu me assumir em casa, era justamente passar a ser desprezada pela minha mãe.
Não foi uma epifania: já faz alguns meses que percebi que estou escrevendo sobre esses medos bem específicos de quem não é cis ou hétero. Os meus não são muito diferentes dos medos dos meus amigos: ser desprezada por quem eu amo; não ser bem-vinda na minha família; ser preterida em relacionamentos; ser discriminada no mercado de trabalho (e eu já sou por morar em periferia); ser agredida verbal, física e/ou sexualmente; ficar sozinha.
É por isso que eu sei que preciso voltar a fazer terapia, sabem?
Se você também escreve, conta pra mim: quais são os seus temas mais frequentes?
A mulher do fim do mundo se foi
Em 20 de janeiro, Elza Soares faleceu de causas naturais. A informação foi divulgada durante a tarde, por sua assessoria, e me entristeceu tanto quanto chocou. É que algumas pessoas que nós admiramos por algum motivo parecem tão firmes naquilo que conhecemos como realidade, parecem tão eternas naquilo que fazem e pelo que são conhecidas... que nos acostumamos a pensar que sempre estarão lá.
Elza Soares foi uma das artistas que passei a ouvir e gostar depois de adulta. Não havia nenhuma música dela nos CDs do meu pai que fizeram parte da minha infância. E minha mãe é uma das pessoas que acham que Elza "se aproveitou" da fama de Garrincha. Para mim, que tenho birra com jogadores de futebol e que nasci no fim dos anos 90, muito depois dessa história de amor e abusos, Garrincha foi apenas um dos maridos de uma mulher incrível. Igual o marido da Gisele Bündchen e o da Shakira. Ou os da Evelyn Hugo - escolham a referência que preferirem.
Devo ter conhecido a música de Elza durante a graduação em Jornalismo, quando fazia parte da produção do programa Matéria Prima, na Rádio Universitária. Era um programa de variedades, que misturava política, cultura, notícias factuais, entrevistas e serviços. Tudo isso intercalado com muita música, variando ao gosto da turma do semestre e da pessoa que ficasse responsável pela programação musical da semana.
Algum dia, alguém selecionou A carne, na versão interpretada por Elza, para tocar. Aquilo mexeu comigo. Sei que a composição não é de Elza Soares, mas acredito que ela foi a pessoa que melhor expressou a revolta contida nessa música por nós, pessoas negras, sermos ainda hoje no Brasil cidadãs de segunda classe - às vezes, terceira, quarta ou quinta. Naquela época, eu estava adquirindo alguma consciência racial (a gente não nasce sabendo, e antes do ensino superior, eu nem mesmo sabia que sou negra), e Elza passou a ser uma grande referência para mim. Outra música dela que conheci na Rádio Universitária e que passei a ouvir bastante foi Maria da Vila Matilde, um hino de combate à violência contra a mulher.
Quando passei a usar o Spotify, Elza fez parte das minhas "explorações" por artistas dos quais eu ouvia as músicas mais famosas, mas não conhecia a fundo. Seu álbum Planeta Fome foi muito impactante pra mim, e nele, as canções que mais gosto são Comportamento Geral e Não recomendado.
Mas admito que só fui conhecer melhor a história dela no ano passado, no episódio 46 do podcast Clube da Música Autoral, que a narrava em recortes. Foi assim que soube que A Carne não era uma composição dela, e soube também dos filhos que ela perdeu para a fome, ainda adolescente, de sua relação com Garrincha, das violências que sofreu e de como foi discriminada por ser negra e nascida na favela.
Fiquei muito triste com sua morte, mas acredito que morreu vitoriosa: de causas naturais aos 91 anos; após uma das carreiras mais duradouras da música brasileira; reconhecida nacional e internacionalmente; vista como uma referência para mulheres, em especial mulheres negras; e não lembrada apenas por ter sofrido com agressões, com a pobreza e o racismo.
Milton Nascimento e Grande Sertão
Não sei se já contei isso aqui, mas tenho no bloco de notas do meu celular uma lista de artistas, álbuns e playlists para ouvir. Comecei essa lista em 2019, com a ideia de justamente conhecer melhor os artistas que eu ouvia nos CDs do meu pai; passei a acrescentar também artistas que meus amigos ouviam, mas eu não conhecia bem; álbuns recém-lançados que eu via muita gente comentando; e playlists que alguém recomendava e que me pareciam interessantes. É assim que escolho o que ouvir desde então, e eu juro que sempre apago o que já ouvi do início da lista, mas ela nunca acaba, porque sempre anoto coisas novas no final.
Com alguns artistas, eu acabo descobrindo que gosto muito, e por isso, decido ouvir não apenas um álbum ou uma seleção de melhores músicas, mas sim, todos os álbuns disponíveis. Foi assim que Caetano Veloso se tornou meu artista mais ouvido desde sempre, e foi assim que ouvi Elis Regina durante semanas entre o fim de novembro e o meio de dezembro; e então fiz o mesmo com Gilberto Gil. É por isso que, desde o início do ano, estou ouvindo Milton sem parar.
A música de Milton é um mistério pra mim. É muito bonita, e também muito poética, e nem sempre fácil de decifrar. Milton também não parece ser tão pop como já foram ou ainda são vários dos artistas da MPB que eu amo. Sei pouca coisa sobre ele, além do fato de que tem uma voz que me acalma e me faz chorar e sonhar.
Mas as referências literárias são uma coisa mais do que clara, para mim, nas músicas de Milton Nascimento. Talvez você saiba que Caçador de Mim é sobre O apanhador no campo de centeio, mas talvez não conheça as referências a Grande Sertão Veredas e à obra de João Guimarães Rosa em geral em várias outras músicas de Milton, como Travessia, do álbum de mesmo nome; Minas Geraes, do álbum Geraes; Noites do Sertão, em Encontros e Despedidas; e A Terceira Margem do Rio, em Txai. Podem haver mais músicas que não me recordo agora.
Li Grande Sertão Veredas em 2020 e ele se tornou não apenas uma das minhas melhores leituras daquele ano, como também uma das melhores da vida. Eu sei que esse livro é famoso só por ser difícil de ler, e muita gente nem sabe do que se trata: é um grande monólogo feito por um homem simples do interior de Minas que já foi um jagunço, contando como entrou em guerra contra outro grupo de jagunços e como fez um pacto com o diabo para derrotar seus inimigos, mas para isso, acabou perdendo seu grande amor. E é incrível!
O narrador de Grande Sertão, Riobaldo, é o homem mais apaixonado do Brasil, e na minha cabeça, um grande ícone bissexual. Leiam o livro para saber por quê.
Tem sido muito gostoso ouvir Milton Nascimento, e perceber as referências - explícitas ou implícitas, admitidas publicamente ou não - a Guimarães Rosa me encanta muito. Já rendeu até tweet emocionado.
Sobre escrita
Meu conto novo intercala entre presente e passado, mostrando como minha protagonista precisou se afastar de sua família biológica e passou a ter uma verdadeira família formada por seus amigos; para precisar fazer um favor para as pessoas que foram babacas com ela nos últimos 10 anos.
Escrevi a primeira cena de flashback dessa história e gostei muito do resultado. No dia seguinte, fiz uma cena um tanto pesada emocionalmente, e também gostei. Em seguida, fiz a segunda cena do passado, com minha protagonista sendo preterida pela primeira vez, e eu sei que ficou boa porque doeu e não foi pouco.
Ainda não sei quanto tempo vou levar com essa história, nem que tamanho ela vai ter ou como vou conectar tudo, mas estou muito satisfeita com o que fiz até agora.
Recomendações
O episódio Vida e obra de Elza Soares, do podcast O Assunto, foi lançado no dia 22 de janeiro e é uma ótima forma de conhecer a importância dela para a música brasileira. Ouçam aqui.
Fiz um reels sobre bloqueio criativo usando um recorte bem-humorado de uma música de Taylor Swift feito por um usuário do TikTok e tive engajamento inesperado. Já está perto de ser meu vídeo com mais visualizações no Instagram. Assista aqui.
O último episódio do podcast Bobagens Imperdíveis fala da primeira romancista do mundo. Fofoqueira ou romancista nos faz mergulhar no Japão feudal com o bom humor e a ironia típicos de Aline Valek. Ouça aqui.
O conto Essa festa virou um Slasher!, de Marina Feijóo, faz uma verdadeira homenagem à franquia Pânico, brincando com as "regras" de filmes slasher e fazendo ótimas piadas e usando muitas referências de cultura pop, incluindo Crepúsculo. Tudo isso com protagonismo negro, amarelo e assexual. Leia aqui.
Eu fico por aqui.
Um abraço,
Lethycia.