Dante Alighieri e a pandemia - Uma mulher que escreve #106
Revisitando um velho guilty pleasure, relembrando minha paixão por um dos maiores clássicos da literatura e revivendo memórias traumáticas. Você nunca vai imaginar como tudo isso se conecta!
Olá, pessoas que leem!
Qual o seu guilty pleasure na literatura? Pra quem não sabe, guilty pleasure significa “prazer culpado”, aquele tipo de coisa que a gente gosta, mas tem vergonha de gostar. Um dos meus é gostar dos filmes que adaptam livros do Nicholas Sparks, especialmente daquela leva mais antiga dos anos 2000, tipo Diário de uma Paixão (2004), Um amor pra recordar (2002), Querido John (2010) e A última música (2010). Dos livros, eu li dois. Um deles, mais de uma vez, e hoje não leria de novo.
Na minha bolha da internet, o Nicholas Sparks tem fama de escrever sempre o mesmo livro. Alguém sempre morre de câncer ou sofre de alguma outra doença que poderia ser tratada gratuitamente aqui no Brasil, pelo SUS, mas como o país dele é um lugar horrível pra se viver, as pessoas têm que fazer vaquinha pra pagar dívida de hospital particular. E tudo magicamente se resolve quando o personagem principal começa a ler a Bíblia. Foi a impressão que eu tive na última vez que reli A última música, e isso me fez doar o livro com gosto, porque não preciso desse tipo de crença.
Além disso, existem várias polêmicas envolvendo o cara, tipo negar que escreve romances, embora seja isso que os livros dele são, ou denúncias envolvendo homofobia, racismo, intolerância religiosa e antissemitismo. Aí não pega nada bem falar que eu gosto dos filmes adaptados de livros dele, todos vistos por mim pela primeira vez muito antes de eu saber que o autor era assim.
Um outro guilty pleasure que eu tenho é, por muito tempo, ter lido e gostado dos livros do Dan Brown protagonizados por Robert Langdon!
Para contextualizar, Robert Langdon é um personagem fictício, professor de Harvard especializado em iconografia religiosa e simbologia e é o protagonista dos livros Anjos e Demônios, O Código da Vinci, O Símbolo Perdido, Inferno e Origem, além de sua nova aventura que deve ser lançada ainda este ano, intitulada O Segredo Final. Em cada um dos livros até agora publicados, Langdon é chamado para interpretar algum mistério envolvendo cenas de crime que contém simbolismos ou mensagens cifradas que a polícia é incapaz de compreender, e acaba sendo inserido numa caçada por pistas com códigos e desafios envolvendo alguma grande sociedade secreta com planos malignos. Ele sempre recebe a ajuda de uma jovem, bonita e inteligentíssima mulher que poderia ser filha dele, mas acaba se interessando por ele. Além disso, nos momentos em que parece não haver nenhuma saída, Langdon utiliza sua memória fotográfica para se lembrar de alguma coisa muito importante que ainda não tinha sido mencionada antes, e consulta muitas vezes o seu relógio de pulso do Mickey Mouse que ganhou de presente do pai quando era criança.
Tudo indica que o próximo livro será exatamente assim, porque todos eles seguem uma fórmula que os transformou em best-sellers e fez com que três deles fossem adaptados para filmes estrelados por Tom Hanks.
Eu digo isso com tanta certeza porque li quatro dos cinco livros protagonizados por Robert Langdon publicados até agora, e recentemente, assisti ao filme de um deles, então achei que era um assunto legal pra trazer aqui.
No início do mês, assisti ao filme de Inferno (2016), em que Robert Langdon desperta em um hospital na Itália, com um ferimento na cabeça e sem se lembrar de nada do que lhe aconteceu, e com a ajuda de uma jovem médica, acaba descobrindo e tentando impedir uma trama maligna criada por um bilionário obcecado por Dante e A Divina Comédia que pretende libertar um vírus capaz de provocar uma pandemia, dizimando boa parte da humanidade.
Não sei se vocês respiraram um pouco mais fundo lendo isso, mas eu digo que definitivamente foi uma experiência voltar a entrar em contato com esse enredo depois de ter sobrevivido a uma pandemia na vida real.
Eu gosto de ler desde que me entendo por gente, e comecei a ler um livro após o outro aos 12 anos de idade. Isso quer dizer que já naquela época, a leitura não era uma coisa ocasional na minha vida, e sim uma coisa constante. Acontece que meus pais não gostavam de comprar livros pra mim, embora incentivassem a minha paixão, então eu dependia do acervo da biblioteca do colégio ou daquilo que outras pessoas pudessem me emprestar.
Vários adultos ao meu redor achavam bonitinho eu estar sempre lendo alguma coisa, e na época, eu não tinha filtro nenhum, então, acabava lendo qualquer coisa que caísse nas minhas mãos. Foi mais ou menos assim que eu li O Código da Vinci pela primeira vez. Alguma professora da escola em que meu pai trabalhava emprestou, falando que achava que eu iria gostar, e eu mergulhei de cabeça!
Eu falei de forma debochada mais acima, mas o livro era interessante, sim, e foi uma coisa incrível considerando que eu tinha pouquíssimo repertório aos 12 anos. Os conhecimentos de Langdon sobre símbolos, os segredos supostamente ocultos em obras de arte famosas, aquela morte sinistra em pleno museu do Louvre, as pistas escondidas em monumentos famosos e toda a conspiração envolvendo o Santo Graal, Maria Madalena e Jesus Cristo, fizeram a minha mente explodir!
Até hoje eu me lembro de coisas específicas desse livro, e por muito tempo ele foi uma das coisas mais incríveis que eu já tinha lido. Novamente: eu não tinha critérios e nem repertório. Mas devo ter comentado alguma coisa sobre isso com a minha amiga Lara, durante o ensino médio, porque ela me deu o seu box com todos os três livros de Robert Langdon publicados até então: Anjos e Demônios, O Código da Vinci e O Símbolo Perdido, e eu devorei os três, relendo o segundo, com a mesma velocidade com que tinha lido O Código anos antes.
Achei Anjos e Demônios menos interessante, embora as mortes fossem horríveis e muito agoniantes de ler, mas eu entendia o por quê de ambos os livros irritarem tanto a Igreja Católica. O terceiro eu achei bem mais ou menos, e pra ser sincera, é o que menos me recordo. Mas é engraçado o livro explorar uma teoria da conspiração vinda de uma organização que não se esforça nem um pouco em se ocultar, quando os dois volumes anteriores giram em torno de sociedades secretas.
Em 2014, quando eu estava no terceiro ano do ensino médio, foi publicada a quarta aventura de Langdon, Inferno, e minha amiga Lívia correu para comprar um exemplar. Assim como eu, ela também achava Langdon muito inteligente e adorava os mistérios e códigos presentes nos livros. O repertório dela, no caso, era formado por séries americanas. Outra coisa que tínhamos em comum era gostar da série Bones, em que a Dra. Temperance Brennan, conhecida como Bones, é uma antropóloga forense que investiga crimes em parceria com o FBI e consegue saber se uma ossada recém-encontrada é de homem ou mulher, em qual faixa etária, e no segundo caso, se teve filhos, só de olhar os ossos, antes mesmo de qualquer análise laboratorial. Os cadáveres eram nojentos, mas por muito tempo foi minha série de conforto.
Minha amiga Lívia me emprestou o exemplar dela de Inferno e eu engoli aquele texto com a ânsia de quem não tinha acesso a coisa diferente há muito tempo. A trama desse era um tanto diferente dos outros três livros, e ainda mais eletrizante, porque dessa vez era a humanidade que corria perigo. Robert Langdon não iria salvar um dos grandes dogmas de uma instituição milenar, mas sim o mundo inteiro!
E diferente do que aconteceu na leitura dos outros livros, Inferno me fez ter vontade de saber mais sobre uma coisa que era referenciada ali: A Divina Comédia. O poema épico de Dante Alighieri que imagina a viagem do autor pelo Inferno, Purgatório e Paraíso, rumo ao encontro com Beatriz, que foi o grande amor de sua vida, na companhia de Virgílio, poeta romano do período anterior a Cristo em quem Dante se inspirava. Praticamente uma fanfic em que o cara enfrenta grandes perigos na companhia de sua diva pop favorita, vê seus desafetos políticos sofrerem as piores torturas imagináveis após a morte, e no final, ainda ganha uma namoradinha. Lindo. Apaixonado, mas também rancoroso. Quem nunca?
Eu decidi ler a A Divina Comédia porque fiquei fascinada com a ideia de um inferno em forma de funil e dividido em círculos para punir cada tipo de pecado. Era diferente da imagem de um lugar vermelho e cheio de fogo, com um capetão chifrudo e servos diabinhos dos desenhos animados, ou a ideia de um lugar sombrio, escuro, sujo e cheio de lama onde você sente fome, sede, dor e outras sensações físicas como se estivesse vivo como no umbral dos livros espíritas que eu tinha lido na minha passagem por essa religião (na qual eu também não acredito mais).
A biblioteca do meu colégio na época não tinha quase nada de literatura contemporânea, mas era rica em clássicos brasileiros e universais, e lá, eu encontrei e li A Divina Comédia. O exemplar de bolso da Editora 34 tem uma excelente tradução e notas de rodapé e devia ter umas 800 páginas, e por um tempo, foi o maior livro que eu tinha lido. (E eu percebo o quanto eu era à toa em 2014 quando me lembro de que li um poema de 14 mil versos cheio de referências históricas que eu não entendia aos 17 anos.)
A verdade é que, embora fosse um livro absurdamente difícil de ler, contava uma baita história e tinha trechos belíssimos. E era legal também ir lendo as notas e entendendo o que Dante falava sobre seu desafetos de forma floreada e metrificada. É um daqueles livros pra ler apreciando a jornada, sem pressa de terminar. Eu já quis reler, mas sacomé, né? Muito livro acumulado nos últimos 11 anos.
Vocês também já tiveream essa experiência? Descobrir uma coisa incrível onde menos esperavam?
Eu achava que ninguém mais entendia a minha fixação por esse livro até que conheci a Anna Shermack, do Pausa para um café, que fez todo um projeto de leitura de A Divina Comédia e tem um monte de vídeos no canal dela no YouTube sobre Dante, sobre a Comédia e sobre obras relacionadas.
Relembrei tudo isso por que o filme de Inferno (2016) passou um tempo na minha lista da Netflix, só por curiosidade. Eu sofro de FOMO, o famoso medo de ficar de fora, com conteúdos de streaming. Morro de medo de um filme que eu quero ver ser removido de uma plataforma e nunca mais entrar em nenhuma outra! Então, quando vi que Inferno sairia da Netflix no fim de junho, corri para assistir.
Eu me lembrava de pouca coisa do livro, e desvendar junto com Langdon e sua assistente da vez a conspiração que estava acontecendo me fez lembrar da pandemia. Não só pelo lado ridículo, porque vimos algumas teorias da conspiração em torno da origem do vírus da Covid-19, mas também porque vimos uma terrível banalização da morte e desvalorização da vida do outro. “Só vai morrer idoso”, “Só vai morrer quem já tem comorbidades”, como se essas pessoas não tivessem direito a um pouco mais disso aqui que estamos desfrutando. Pessoas egoístas e poderosas demais dizendo que não era importante nos prevenirmos, que não haveria grandes riscos, que o vírus precisava se espalhar para que “os mais fortes” sobrevivessem.
Cinco anos se passaram desde o início da pandemia e, hoje, vivemos como se nada tivesse acontecido. Pouco se fala sobre o assunto, seja para relembrar as perdas que todos nós sofremos - afinal, foram mais de 700 mil mortes apenas no Brasil -, seja para dar continuidade à vacinação para todos, seja para tratar os traumas deixados. Porque uma coisa como a que vivemos não vai embora, simplesmente. Responsabilização dos envolvidos em negligência, então, nem se fala! Esse episódio do podcast Viracasacas fala sobre a importância de preservarmos essa memória e sobre a gravidade de deixar os crimes da pandemia impunes.
Da minha parte, eu posso dizer o que ficou. Tive Covid no início de 2022, embora ainda usasse máscara mesmo quando muita gente já tinha deixado de usar e não frequentasse lugares muito cheios. Meus sintomas foram leves, mas me derrubaram por dias. E um deles permaneceu por semanas. Eu tossia, tossia e tossia sem parar. Quando me consultei com um médico, soube que chamavam isso de “Covid longa”, que é quando um ou mais de um sintoma continua acontecendo ou volta com frequência mesmo após o fim do período de transmissão da doença, e que até então, não se sabia que consequências a Covid longa poderia trazer. Não me lembro por quanto tempo eu continuei tossindo. Mas, por quase um ano, eu que ando muito de bicicleta, senti que meu fôlego tinha se tornado mais curto, e que atividades antes corriqueiras me cansavam bem mais rápido do que antes. Subir um lance de escada, na empresa em que trabalhei no fim daquele ano, me obrigava a parar para descansar.
Houve também uma consequência permanente pra mim. Em abril de 2021, perdi minha amiga Lara, que havia me dado de presente os três primeiros livros com protagonismo de Robert Langdon. Um áudio no WhatsApp avisando que seria internada foi a última notícia que eu tive dela, e se tornou também a última lembrança, até que seu número de telefone passou a ser utilizado por outra pessoa, e até que eu mesma perdi o histórico de nossa conversa.
Quando Lara se foi, sua mãe já era falecida, e como ela havia brigado com o pai anos antes, eu nunca fui apresentada a ele. Também não conheci seus irmãos mais velhos, todos com família própria, pois nenhum vivia em Goiânia. Assim, não tinha como receber notícias dela por outra pessoa. Eu esperei que ela retornasse, avisando por mensagem que estava recuperada. Como a mensagem não veio, fui ao seu Facebook, e apenas um triste recado publicado por uma parente distante me avisou de sua partida, dias antes. Eu nem sequer soube em que cemitério minha amiga foi enterrada.
A morte de Lara foi pra mim uma coisa tão virtual que às vezes duvido se aconteceu. Assim como o Jack para a Rose, de Titanic, Lara existe apenas na minha memória.
Então, foi assim que um filme de qualidade duvidosa se tornou bem mais assustador pra mim do que o livro que o inspirou tinha sido na época em que li. Não foi nada fácil pensar em todas essas coisas, especialmente com a insistência de algumas pessoas para que nos esqueçamos do que foi a pandemia. Mas esquecer também não é a resposta.
Li, ouvi e assisti
Continuo lendo Garoto encontra garoto. A leitura demorou para fluir e achei que iria desistir desse, mas agora, estou achando até bem divertido. Terminei de ler Nimona e Junho te trouxe aqui e estou lendo também Mais ou menos 9 horas, de Vitor Martins, e Como ter o pior dia dos namorados da sua vida, de Julia Rietjens.
O primeiro é uma história ao mesmo tempo divertida e dramática sobre Júnior, que está viajando de São Paulo até Nova Friburgo, no Rio de Janeiro, para o velório de seu pai com quem sempre teve uma relação difícil. No ônibus, ele acaba tendo que sentar ao lado de seu ex-namorado da adolescência, e isso desperta lembranças doces, tristes e amargas em diferentes medidas. É a história mais adulta do autor e ainda carrega o mesmo senso de humor de seus livros anteriores. Estou amando. Já o outro, é uma novela sobre duas melhores amigas competindo para ver quem tem o pior dia dos namorados. Uma delas é bissexual, e isso é tudo o que eu sei porque ainda estou no início.
(Caso tenha se interessado por qualquer um dos livros citado aqui, você pode acessar o meu linktree e clicar no primeiro botão para adquirir pela Amazon. Qualquer compra feita dessa forma me faz receber uma pequena comissão, e você não paga nada a mais. Caso esteja lendo pelo site ou aplicativo do Substack, pode clicar nos links citados nos títulos. Funciona do mesmo jeito!)
Fiquei apaixonada pelo novo álbum de Luedji Luna, o Antes Que A Terra Acabe. É gostosinho demais, como tudo que ela fez antes. No podcast Fio da Meada, ouvi uma entrevista excelente sobre os perigos envolvidos no uso de certas tecnologias de reconhecimento facial e no fornecimento e armazenamento de dados para essas tecnologias.
Finalmente assisti à primeira temporada da série de Entrevista com o vampiro, e assim como Louis, eu fui seduzida! Que delícia de série! Está disponível no Prime Video. Para quem gosta de arte e escrita, recomendo também o ótimo documentário Joan Didion: The Center Will Not Hold, que apresenta a biografia e os principais trabalhos da escritora, e está na Netflix.
Eu fico por aqui!
Um abraço,
Lethycia Dias
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