Distâncias e acessos - Uma mulher que escreve #88
Quando, até estando perto, você ainda está longe
Olá, pessoas que escrevem!
Imaginem a seguinte situação:
Você vive longe de onde as coisas acontecem no mundo da escrita, e um isolamento histórico-geográfico do lugar em que você vive em relação a esse mundo dos sonhos faz com que todos tenham de sair de onde você está. Você não pode fazer isso, então, você sabe que terá menos oportunidades. Talvez você nunca tenha as mesmas chances que as pessoas que você admira tiveram, porque elas estão no lugar certo, e você não.
Então, você sabe que precisa aproveitar o pouco que tem. Você sabe que precisa seguir o conselho de “Vá a eventos presenciais, se apresente e converse com as pessoas, participe de atividades”, e só tem uma chance pra isso, porque no lugar onde você vive, só existe um evento literário anual, e você precisa dar graças a Deus por isso, há lugares onde nada acontece.
Então, você se prepara. Acompanha o perfil do evento, esperando ansiosamente pela data deste ano. Vibra quando é divulgada, e vibra mais ainda quando publicam a programação. Quando as inscrições para atividades são abertas, você não perde tempo, se inscreve naquilo que mais te interessa, e já se planeja para, naquele fim de semana, se dedicar integralmente a isso.
O tempo passa, a data se aproxima, e você cumpre outra meta do seu objetivo. Encomenda marcadores de página numa gráfica online, tira dinheiro da sua pobre reserva para investir nos seus livros, que já anda mal das pernas há tanto tempo, porque esse evento é a sua chance de ir além do que os algoritmos de redes sociais permitem. Você vai tirar o pó daquele marcador com as capas de todos os seus livros e um QR Code que você fez meses atrás e ainda não pôde usar, você vai se apresentar como escritora, se apropriar dessa palavra que tanto quis usar, e vai transformar estranhos em futuros leitores.
Você está tão focada nisso que até calcula quantas unidades de cada livro precisa vender para recuperar o valor do investimento, que afinal de contas, vai te fazer falta nos próximos meses se não voltar pra sua conta bancária. Você faz uma tabela com esses números. Vai ser difícil, são muitos livros para vender, mas aquele que te dá um ganho maior pode ter apelo especial para o público desse evento, afinal de contas, é um livro sobre escritoras goianas, quem em Goiás não gostaria de ler sobre isso? Você acredita que vai conseguir, sim, vai dar tudo certo, com sorte vai até ultrapassar sua meta de vendas. Vai ser um final de semana incrível.
O dia chega, mas sua rotina é complicada, você não pode só ir ao evento. Precisa aproveitar essa rara ida ao centro da cidade, tão distante, para fazer também outras coisas, então sai de casa cedo, uma mochila pesadíssima pendurada na frente do corpo para que ninguém mexa nos bolsos dentro do ônibus. Você chega cedo ao seu primeiro destino, compra sua passagem de ônibus interestadual, vai à feira, compra duas calças jeans porque já está ficando precisada de roupa para ir trabalhar. Enfia as calças dentro da mochila, pega outro ônibus e sobe uma das avenidas centrais da cidade, até descer no centro cultural onde o evento acontece. São 9h15, você está atrasada para a oficina disputadíssima na qual se inscreveu.
Sua chegada não causa tanto constrangimento quanto você imagina, a atividade ainda está só começando e há uma cadeira vazia onde você se senta. A oficina é dinâmica, o palestrante fala de sua trajetória e exibe seu trabalho em amostras tão pequenas que cabem na palma da mão, então, distribui materiais e passa a primeira atividade. Você não é tão boa com trabalhos manuais, mas dá seu melhor e se diverte. Você usa seu bom-humor nas próximas duas atividades e o final da manhã passa voando.
O evento já está acontecendo de verdade agora, os expositores terminaram de organizar seus espaços, e pessoas percorrem o caminho vendo o que está disponível. Você olha um pouco de tudo, entra nas duas salas de exposição e admira por alguns minutos as obras à mostra, sentindo aquele enlevo de quando tem contato com artes visuais.
Você sai do evento, vai almoçar, e o seu restaurante preferido do centro, que já foi tão barato, agora serve um prato de comida à vontade por 20 reais. Já custou 16, e antes, 15, e até mesmo 13, e você não se acostumou com os sucessivos aumentos. Então você volta para o evento e entra no ambiente onde estão expostos os livros, e passa para a terceira sala de exposições, onde se impressiona com uma coleção de bancos de madeira feitos por povos indígenas, e são bancos moldados com forma de animais - macacos, onças, antas, capivaras, araras. Um banco-macaco-prego, com um simpático bebêzinho-macaco nas costas, te lembra dos seus tempos de estudante, quando os macacos do campus da universidade tentavam roubar seu lanche.
Você sai dali emocionada, enlevada, transportada para outro universo. Está na hora de cumprir sua missão. Você vai para o lado de fora e tenta observar as pessoas, tentando perceber quem pode se interessar pelos seus livros. Você vê um grupo de meninas jovens, e parecem as pessoas perfeitas para quem falar dos seus livros de romance, mas elas parecem tão integradas entre si, um grupinho tão coeso, tão fechado em si mesmo… Não há espaço para você.
Pessoas mais velhas podem não gostar, veja bem, essa ilustração com meninas se beijando… Talvez o seu livro de não ficção seja uma forma melhor de começar.
Você olha e olha e olha, e na verdade não sabe por onde pode começar, quem pode ser a primeira pessoa. Você não sabe quem está ali por causa dos prints, pôsteres, quadros e cartões-postais e bottons que os artistas vendem; quem está ali por causa dos livros e autores independentes e pequenas editoras; e quem está ali só porque estava passando por perto e quis ver o que era aquela gente toda reunida.
Então, andando por ali, você é reconhecida por uma escritora. É uma coincidência que vocês morem na mesma cidade, e ela saiba que você é você, porque vocês interagem na internet, e normalmente você só fala na internet com pessoas que moram em outros estados. Ela é simpática, apresenta suas colegas de estande, e te pergunta se você não quis estar também ali, naquele lado do balcão. É tudo o que você queria, mas você só tem e-books, seu trabalho não existe fora da internet.
Quem você está querendo enganar? Você sabe que não vai conseguir vender produtos que ninguém pode ver nem tocar!
E você está cansada, com calor, seus sapatos já estão começando a machucar seus pés, a mochila está pesada. Entregar a caixa de leite exigida como doação para participar da oficina não fez tanta diferença no peso, e seus ombros e suas costas reclamam. Você já gastou quase todo o seu dinheiro com as calças e o almoço, e sabe que não pode comprar livros.
Então, você vai embora. Entra na estação mais próxima do ônibus que cruza a cidade de leste a oeste, e que vai te levar de volta até o mundo sem calçadas e cheio de mato e lixo acumulado onde você mora. A cidade passa pela janela, essa coleção de lugares que te despertam tantos sentimentos contraditórios. Tudo fica feio e sujo como sempre foi na periferia.
Você chega em casa às 15h, cansada, suada, com os pés realmente machucados depois de percorrer a pé o trajeto do seu último ônibus que demoraria demais a sair do terminal, e se sentindo tão frustrada que preferia não ter ido a lugar algum.
As últimas
O texto anterior foi um relato da minha participação na feira e-cêntrica, no dia 06 de abril. Como podem ver, não chegou nem perto de ser como eu esperava.
No último final de semana, voltei a fazer edições no roteiro do haters to lovers universitário, inserindo um capítulo a mais antes do momento de clímax da história. Percebi que a reta final estava apressada, não deixando tempo para que as personagens percebam o que estão sentindo. Ainda quero acrescentar outro capítulo nessa parte, antes do grande conflito da história.
Na próxima segunda-feira, dia 22 de abril, participarei do Niver do Lito, a ação de aniversário de carreira do escritor Alan Silva, que promoverá livros LGBTQIAP+ gratuitos ou a R$ 1,99. Deixarei meus livros Mesmo que eu vá embora, Antes que as dores te sufoquem e De todas as paradas do mundo em oferta.
Quem sabe, online, eu consiga vender alguma coisa.
Li, ouvi e assisti
Terminei de ler A grande chance de Ana Luna, e comecei a ler Metade cara, metade máscara, de Eliane Potiguara, junto com Racismo estrutural e Better than revenge.
No último final de semana do mês, estarei no show do Jão em Brasília, então estou ouvindo repetidamente o álbum com a setlist da Superturnê.
Assisti pela netflix a um documentário sensacional sobre Rita Moreno, a Abuelita de One day at a time, e adorei. Rita Moreno: apenas uma garota que decidiu ir em frente fala de como havia poucas oportunidades para atrizes latinas nos EUA quando ela iniciou sua carreira nos anos 50 e 60, e de como os papéis se repetiam numa mistura horrível de estereótipos racistas e misóginos, além de um encaixotamento de tudo o que fosse não-americano como “exótico”. Mas também fala de como Rita não deixou que isso definisse sua carreira, e como abriu caminho em outros espaços do meio artístico. Esse filme curtinho será removido da Netflix no dia 1º de maio, então, corram pra ver.
Na mesma pegada, Soul of a nation: a ascensão das artistas negras de Hollywood, conta com depoimentos de várias atrizes, diretoras, roteiristas e outras profissionais do cinema sobre aquilo que Viola Davis já disse uma vez: a única coisa que separa uma mulher negra de qualquer outra pessoa são as oportunidades. Esse aqui está no Star+ e tem apenas 40 minutos de duração.
Por hoje é isso.
Um abraço,
Lethycia Dias
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