Do susto ao pertencimento - Uma mulher que escreve #97
Para todas as ex-crianças que foram desafiadas por um irmão mais velho, um tio ou um primo a assistir filmes de terror para provar que não tinham medo
Olá, pessoas que escrevem!
Eu amo fazer escolhas temáticas, então, neste mês de outubro estou tentando ler e assistir livros e filmes de horror e terror. Eu já faço isso há alguns anos e nem me lembro de quando comecei, mas alguns dias atrás, estava ouvindo ao especial comemorativo de 200 episódios do podcast Esqueletos no Armário, e inspirada nele, decidi falar um pouco aqui sobre a minha relação com esses gêneros na literatura e no cinema.
Posso dizer que essa relação foi forjada com base nos filmes de baixo orçamento dos anos 2000. Franquias intermináveis, filmes de fantasma, de casa assombrada, de assassinos perseguindo adolescentes noite adentro. E, vejam bem, a assassina às vezes era a própria morte, e dificilmente dava pra fugir dela.
Algumas grandes influências nessa relação foram meu irmão mais velho Jiuliano e meus primos Lucas, Matheus e Suelen. Eu era com frequência desafiada por algum deles a provar que não tinha medo assistindo a qualquer filme alugado numa locadora até o fim, sem sair da sala nem uma vez. Era sempre à noite, a luz tinha de ser apagada e eles faziam questão de ficar perto de mim para tentar me dar sustos naqueles momentos mais tensos, quando alguém está cruzando um corredor longo e escuro e todo mundo sente que alguma coisa assustadora vai pular na tela. E, se eu ficasse com medo e tentasse sair dando a desculpa de que precisava ir ao banheiro, o filme era pausado no DVD, para que eu não perdesse nenhuma parte.
Mas não importava qual fosse o tipo de filme ou o quanto eu tentasse defender a minha “honra” - porque, se demonstrasse ter medo, eles ririam de mim -, o resultado era sempre parecido. Na hora de dormir, eu sentia medo, às vezes pavor, e às vezes, precisava correr para o quarto dos meus pais pedindo para dormir com eles.
Foi assim que eu passei anos traumatizada com o som emitido pela mulher morta em O grito (2004) e com a imagem da loira carbonizada por uma máquina de bronzeamento artificial em Premonição 3 (2006).
Outra forma que meu irmão tinha de me assustar era me mostrando imagens da internet, especialmente no finado site Assustador.com.br, que foi muito popular naquela época. A foto da garota num corredor segurando uma boneca está tatuada na minha mente até hoje!
Com o passar do tempo, os filmes de terror foram saindo e depois voltando à minha vida. Aquela onda de produções da minha infância foi passando, outras modas vieram, nós deixamos de ter TV a cabo em casa e as locadoras foram sumindo. Eu passei a ir menos atá as casas dos meus primos, e como já não era mais criança, eles não tentavam mais me assustar. Mas o terror continuava a me fascinar. Eu odiei não ter visto Invocação do Mal (2013) no cinema quando todos diziam que esse filme fazia pessoas passarem mal. E anos depois, quando passei a assinar Netflix (e o catálogo do streaming era muito melhor do que hoje, digamos de passagem), um dos primeiros filmes que vi foi Psicose (1960), só porque queria ver a cena da faca.
Um livro com contos de terror que peguei na biblioteca da escola durante o ensino médio me deixou aterrorizada com a ideia de que o filho morto-vivo de um casal enlutado poderia estar batendo na porta de madrugada em A pata do macaco, conto de W. W. Jacobs. Pouco tempo depois, Edgar Allan Poe me impressionou com suas histórias sobre gatos pretos, casas que desabam, homens obcecados por jovens mulheres mortas, corações que continuam a bater mesmo depois de arrancados da caixa torácica e vinganças cruéis envolvendo emparedamento.
Descobri Stephen King, e aí pronto, foi um esquema de pirâmide! Acompanhei Danny pelos corredores do Overloock em O Iluminado e fiquei sem dormir imaginando os horrores da morte na noite em que terminei de ler O Cemitério, e passei momentos de irresistível agonia com Misery - Louca Obsessão.
Anos mais tarde, Mariana Enriquez me deixaria em choque com sua história de mulheres que incendeiam a si mesmas e me lembraria de que há coisas especificamente assustadoras para nós, latinoamericanos. Que se o que aterroriza uma família de classe média estadunidense é a ideia de uma casa aparentemente perfeita, porém habitada por fantasmas, o que nos faz gelar o sangue pode ser a ideia de jamais saber o que aconteceu com aquele parente desaparecido há décadas. Mais alguns anos se passariam e escritoras mais jovens do que ela como Maria Fernanda Ampuero e Mónica Ojeda me lembrariam de que também há horror em ser desumanizado o tempo todo; que algumas das maiores violências que alguém experimenta podem vir de dentro de casa; que poucas coisas podem ser mais assustadoras do que gente religiosa demais; que autoritarismo e perseguição política são fantasmas que nunca deixaram de nos assombrar.
E ao mesmo tempo em que buscava conhecer melhor a mim mesma lendo livros em que pessoas parecidas comigo falavam de suas dores e angústias, acabei por descobrir que foi no horror onde muitos autores encontraram formas de representar aquilo que a sociedade apontava ser feio e inaceitável neles mesmos. Que muitas vezes os monstros que aterrorizam cidadezinhas podem se tornar o conforto de quem, na vida real, também causa estranhamento e repulsa em gente careta. Que na liberdade de um gênero sempre marginalizado e visto como menor, pessoas no mundo todo encontraram o espaço que precisavam para falar sobre ser tudo aquilo que costuma ser rechaçado e combatido pela norma.
Eric Novello, ao expor suas reflexões e pesquisas sobre horror queer na newsletter Encruza (antiga Encruza Criativa), se tornou uma forma de referência pra mim, e me fez ver o quanto havia de subtexto queer - ou texto bem explícito mesmo - em várias obras famosas de horror através do tempo.
E descobri que havia uma parte de mim nem sempre à mostra, nem sempre clara para mim mesma, que talvez as pessoas ao meu redor achassem feia, ofensiva e até assustadora, mas que quando se revelava para mim, fazia com que eu me sentisse estranhamente bem, e que consumir essas obras, pensar sobre elas e falar delas com outras pessoas queer como eu me deixava mais próxima disso.
E uma vez que descobrimos um segredo, não tem mais como voltar atrás. A consciência de nós mesmos não pode ser apagada, nem que seja escondida, enterrada ou queimada. O horror e o terror me ajudaram a entender isso.
Gostou deste texto? Viveu alguma experiência parecida na infância ou adolescência? Gosta dos filmes, livros ou autores que mencionei? Deixe um comentário abaixo!
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Li, ouvi e assisti
Terminei de ler Coraline, Viralizou e Sangue Sobre Tela. O primeiro foi um bom retorno a uma história da qual eu já gostava muito. O segundo me divertiu de um jeito que livros não faziam há um bom tempo. Já o último foi uma experiência interessante num romance paranormal com sáficas que se tornam vampiras para desfrutar da eternidade juntas após terem sido separadas na vida humana.
Li também, por inteiro, De cada quinhentos uma alma, uma novela de Ana Paula Maia com seus personagens clássicos Edgar Wilson, Padre Tomás e Bronco Gil em meio a uma epidemia misteriosa que parece levar a humanidade ao seu fim; O Clã, primeiro volume da série As crônicas de Mirabelem, uma história em quadrinhos sobre vampiros de Sasyk, Izadora Lima, Clarice França; e Galateia, de Madeline Miller. Este último é uma incrível releitura feminista do mito grego de Pigmalião, sobre um escultor que se apaixonada por sua obra. Aqui, conhecemos o ponto de vista da escultura Galateia e de ela encara essa relação.
Agora, estou lendo Joyland, de Stephen King, Entrevista com o vampiro, de Anne Rice, e Este é o mar, de Mariana Enriquez. No primeiro temos uma história de assombração em um parque de diversões; o segundo é a história que inspirou o filme e a série de TV de mesmo nome, e a leitura anda tão fluida que eu leio ouvindo na minha mente a voz do cara que dubla o Brad Pitt na versão em português do filme! Por fim, o livro de Mariana Enriquez é uma curiosa história em que entidades chamadas de luminosas têm o dever de criar astros da música, transformando artistas em estrelas com legiões de fãs, e tornando-os inesquecíveis - quase sempre por mortes trágicas.
Passei os últimos dias ouvindo a playlist queen elizabeth II, uma seleção gostosinha de jazz. Agora, estou viciada na old actress hollywood, com canções de musicais clássicos interpretadas pelas próprias atrizes da Era de Ouro de Hollywood. Uma delícia de ouvir e meu deu vontade de ver e rever vários filmes!
Entre os podcasts, recomendo a nova série do História Preta, que resgata a história pouco conhecida de quando o escritor Lima Barreto foi internado em um hospício, no início do século passado. Foi o pior momento da vida dele, de onde vêm sua melhor fotografia à qual temos acesso hoje. O primeiro episódio está muito bem feito!
E claro, indico também o episódio comemorativo do Esqueletos no Armário que inspirou esta news. Talvez você se sinta meio por fora se não for ouvinte habitual, então sinta-se à vontade para explorar o feed do Esqueletos, que tem um conteúdo incrível!
Em meio à minha maratona de conteúdos de terror e horror de outubro - que, digamos de passagem, envolve uma classificação bem elástica porque andei assistindo também a filmes policiais e de suspense - assisti a algumas coisas ótimas!
O Homem de Palha (1973) acompanha um policial cristão investigando o desaparecimento de uma criança numa ilha com costumes pagãos e é ironicamente divertido pra quem não tem religião. Está disponível na Mubi, e se você não assina, pode fazer um teste grátis de 30 dias! Lá também entra em breve O Babadook, um filme que eu esperei anos até que entrasse em algum streaming.
Já O mal que nos habita (2023), é um filme de possessão bem diferente do habitual. Nele, a possessão se assemelha a uma espécie de infecção viral, em que o mal - que nunca deve ser nomeado - se hospeda em corpos de humanos e animais até que possa nascer em corpo próprio. Matar alguém possuído é um perigo. Usar armas de fogo ou energia elétrica, também. Sentir medo, pior ainda! Esse eu vi pela Netflix.
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Eu fico por aqui.
Um abraço,
Lethycia Dias
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