Ela é tão Barbiezinha, tão galera! - Uma mulher que escreve #73
A ambiguidade da boneca Barbie, as críticas envolvendo o filme de Greta Gerwig e por que uma coisa é fútil quando "é de mulher".
Olá, pessoas que leem!
Ontem fui ao cinema aproveitando o dia de promoção para assistir a Barbie (2023), mas antes disso eu já estava há pelo menos uns dez dias pensando sobre esse filme, sobre a forma que mobilizou pessoas até as salas de cinema e sobre o que e como as pessoas estão falando a respeito da produção nas redes sociais ou fora delas. Venham comigo!
Quando era criança, eu não correspondia a algumas das expectativas gerais das pessoas ao meu redor sobre como uma menina deveria se parecer ou se comportar. Eu adorava rosa, amava encher o meu cabelo de enfeites coloridos e brilhantes, mas não sabia “sentar que nem mocinha” e detestava brincar de boneca. Achava muito mais legais os bloquinhos de montar e carrinhos e bonecos dos meus irmãos. Eu tinha um monte de bonecas de vários tipos, e ainda criança, abri mão de quase todas porque não brincava com elas.
Mas havia uma boneca de que eu gostava, a única que eu queria ter e não podia, porque era cara demais. Eu amava a Barbie!
Consegui ter apenas uma, das mais simples, depois de pedir muito pra minha mãe como presente de Natal. A minha Barbie era do modelo padrão, loira, e vinha com um vestido azul de corte reto e sapatos também azuis. Eu nunca cortei o cabelo dela, como fiz com os de outras bonecas quando era mais nova, mas prendia com minhas próprias xuxinhas e “penteava” com os dedos, porque antes disso eu já havia descoberto que enfiar um pente de verdade num cabelo de boneca também fazia com que estragasse. Não me lembro por quanto tempo eu mantive essa boneca - provavelmente, até perceber que não brincava mais de nada e doar todos os brinquedos restantes para crianças que iriam usá-los - mas a relação era diferente da que eu tinha com bonecas-bebês ou bonecas que se pareciam com menininhas bem comportadas.
Só muitos anos depois é que fui entender que eu queria tanto ter Barbies quando era criança porque a Barbie representava tudo aquilo que eu queria ser: uma mulher bonita, bem vestida, educada, autossuficiente, independente. Várias profissões. Tudo que uma menina pode sonhar. Eu também me lembro que, quando lia contos de fadas adaptados para ficar palatáveis para crianças na coleção com doze livrinhos infantis que meu pai me deu assim que fui alfabetizada, eu tentava copiar as ilustrações das princesas como a Cinderela e a Bela Adormecida e queria que meus dedos fosse tão finos e minhas mãos tão delicadas quanto as delas. Mais ou menos na mesma época, uma das coisas que eu mais queria era ter cabelo liso, porque amava penteados com franjinha, e tinha ouvido que só meninas com cabelo bem liso podiam ter franja. Só meninas com cabelos como o da minha Barbie.
Já adulta, estudando sobre feminismo, gênero e sexualidade, percebi todas as pressões estéticas que são impostas a mulheres, com a necessidade de manter sempre uma aparência jovem e perfeita, estar maquiada, usar roupas da última moda, fazer os procedimentos estéticos do momento para cabelo e pele, manter-se magra. Mas também entendi, lendo e ouvindo mulheres negras, que tudo isso só era exigido tão severamente de mulheres brancas. A beleza não era esperada de mulheres negras, afinal, até pouco tempo atrás, nós nem éramos consideradas gente! No século XIX, Sojourner Truth, uma mulher negra que fugiu da escravidão nos EUA, questionou publicamente as gentilezas dispensadas a mulheres brancas por cavalheiros brancos, que nunca haviam sido dadas a ela. “E não sou uma mulher?” foi a frase que a tornou célebre, dando título à sua própria história, e anos depois, a um livro de ensaios de bell hooks.
Não à toa, até pouco tempo atrás, sequer existiam produtos próprios para os nossos cabelos. Produzi uma reportagem sobre isso anos atrás para o programa Matéria Prima, da Rádio Universitária da UFG, posteriormente adpatada como post para o blog mantido pelos alunos da disciplina de produção do programa.
Só recentemente foram criadas novas bonecas Barbie com corpos diversos: diferentes etnias, tons de pele e tipos de cabelo, altura e tipo físico variados. A primeira vez que vi Barbies negras sem ser por vídeo ou foto foi em 2018, numa visita ao escritório de Anita Canavarro, uma das escritoras que entrevistei para meu livro Elas Falam Por Si. Deixo a seguir o trecho específico:
Chamada pela mãe, uma menina em uniforme escolar carrega duas bonecas Barbie negras, com cabelos volumosos e crespos. Uma das bonecas usa roupas estampadas; a outra usa um vestido branco, e nela, mãe e filha tentam ajeitar um longo colar de contas, passando-o pela cabeça e pelos cabelos artificiais. Lethycia observa com atenção e carinho a cena, lembrando da única Barbie que teve em sua infância nos anos 2000: branca e loira, a boneca tinha um vestido azul e saltos altos.
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A Barbie é um fenômeno extremamente ambíguo da cultura pop. Ao mesmo tempo em que foi criada para que meninas pudessem sonhar com o que quisessem numa época em que meninas só brincavam de ser mães, não tinha nenhuma intenção de mudar a realidade. Por isso é que, quando houve um Ken Médico, a Barbie só podia ser enfermeira, e décadas se passaram até que fosse criada a Barbie Médica. A Barbie foi pensada para se parecer uma “mulher perfeita”, e por isso, muito tempo se passou até que deixasse de reproduzir o padrão de beleza branca estadunidense. Por isso é que sua imagem de perfeição, através do tempo, moldou os desejos irrealizáveis de garotas como eu, que não poderiam nunca ser fisicamente como a Barbie, até que houvesse Barbies como elas.
Não sou eu quem digo isso, mas sim pessoas que trabalharam para a marca Barbie e que contam a história da boneca desde sua criação até os tempos atuais, no episódio 2 da primeira temporada da série Brinquedos que marcam época, que está disponível na Netflix. Assisti ao minidocumentário alguns dias antes de ir ao cinema, e pude não apenas pensar sobre essa ambiguidade como também entender melhor algumas das referências feitas no filme. Vale a pena conferir!
O filme de Greta Gerwig é consciente dessa ambiguidade e faz piada com ela ao mesmo tempo que a utiliza como recurso narrativo na jornada da Barbie Estereotipada (interpretada por Margot Robbie) que parte de uma busca por corrigir uma “imperfeição” em seu corpo para um processo de autodescoberta enquanto indivíduo, como alguém que é muito mais do que um corpo magro, um cabelo loiro comprido e uma “casa dos sonhos”.
A aparência, as atitudes, sonhos e ideais que são impostos de forma cada vez mais impossível hoje em dia para mulheres - inclusive mulheres que não são brancas - são questionados e jogados na nossa cara quando Barbie deixa a perfeita Barbielândia e viaja para o nosso mundo, onde mulheres são objetos para servir aos desejos dos homens, e se depara com os efeitos que sua própria existência têm sobre a mente e os sentimentos de uma mulher real e comum. E eu amei isso no filme, sem falar da forma cômica como tudo isso foi feito.
Quando eu soube que Greta Gerwig, a diretora de Adoráveis mulheres (2019), estava envolvida em num filme sobre a Barbie, fiquei automaticamente curiosa, porque parecia algo incompatível com o trabalho dela que eu acompanho desde Lady Bird (2017), mas esse filme só é como é por causa dela. E claro, ainda é uma crítica bastante liberal feita numa superpordução cinematográfica - mas o filme provavelmente nem teria chegado a uma das duas salas do Cine Ritz (um cinema de rua em risco de deixar de existir, onde eu o assiti), se não fosse um blockbuster.
Não tenho nenhuma dúvida de que boa parte das pessoas que lotaram salas de cinema desde o dia 20 sequer conheciam os filmes anteriores de Greta Gerwig ou não esperavam pelo que encontrariam na tela, além de um filme cor-de-rosa sobre a boneca mais famosa do mundo, numa época em que tantos filmes recebem uma horrorosa paleta de cores esverdeada, escura e sem contaste, como na última adaptação de Peter Pan (2023). Sei muito bem que só queriam se divertir um pouco assistindo a algo que parecia familiar para elas, vestindo cor-de-rosa e tirando fotos dentro de uma caixa gigante como se fossem a própria boneca, porque sim, muito obrigada. Não há nada de errado nisso e eu também fiz.
Quando escolhi essa roupa para usar ontem, eu não me senti obrigada a satisfazer os padrões de feminilidade que eu mesma contesto de vez em quando. Eu gosto de rosa, de shortinhos, de bolsa a tiracolo, de alguns tipos de salto, de um pouco de maquiagem de vez em quando e já não causo desconforto ou constrangimento usando saias e vestidos como fazia quando criança, e isso não me torna menos feminista, menos inteligente ou menos séria ou menos competente em nada que faço, como bem disse minha veterena da graduação Natália Loiola, em um post no Instagram dela. Gostar de coisas tradicionalmente vistas como “femininas” não me desqualifica, e também não é o que me torna mulher - afinal, existem mulheres que não gostam, e tudo bem também.
O que me incomodou nos últimos dias foi a onda de pessoas dispostas a odiar o filme só porque era feito por mulheres e (parecia feito só) para mulheres. Porque era cor de rosa e porque pessoas em todo o país estavam se vestido de rosa para ir ao cinema. Estavam chamando de bobagem, futilidade ou exagero se vestir de forma específica para um evento específico, como se homens não vestissem os uniformes de seus times para ver jogos de futebol dentro ou fora de estádios. Uma querida usou sabiamente a música The Man, de Taylor Swift, para falar disso em um vídeo que vi hoje no Instagram. Parafraseando a música da loirinha, se a gente fosse homem, a gente poderia gostar do que quisesse.
Como eu disse numa edição passada, tudo aquilo de que mulheres gostam, ainda que seja aquilo que é imposto pra nós, é ridicularizado e considerado ruim ou infantil. Recomendo a leitura!
As novas
No dia 16 de julho, De todas as paradas do mundo completou um mês de publicação! De lá até aqui, já tivemos 19 mil páginas lidas e 38 avaliações postadas na Amazon. Sabia que você pode colaborar com o aumento desses números? Se estiver com uma assinatura do Kindle Unlimited ativa, você pode aproveitar para ler. Se já leu, então pode postar uma avaliação! Faça tudo isso por este link!
No início do mês, quando começaram as aulas do curso sobre Mulheres latinoamericanas na literatura de horror, percebi que o caderno 14x21 cm que eu uso como auxílio para minha escrita estava acabando. Nele, faço anotações de estudo e ideias ou questionamentos para novas histórias, além de ter feito na primeira página um desenho de como eu imaginava a capa de Como Salvar uma Ceia de Natal antes de encomendar o serviço com Johnatan Marques. Isso foi em 2021, então o caderno reúne dois anos da parte do meu trabalho criativo que as pessoas normalmente não têm acesso. É lindo.
Um anjo me enviou um link de uma loja na Shopee e consegui comprar dois novos cadernos sem pauta, estilo Moleskine, com elástico e fitilho, para preencher com mais anotações e criar muito mais.
Na semana passada, após ter concluído o curso de escrita, voltei a escrever o meu romance. Esse capítulo começou, assim como o primeiro, com algumas mudanças em cenas da versão anterior, mas logo passei a desenvolver cenas completamente novas. Hoje cedo, deitada na minha cama, digitei pelo celular 778 palavras que completaram esse segundo capítulo.
A Barbiemania me pegou e na semana passada aproveitei o hype do filme pra postar, no meu instagram, memes literários, memes sobre meus livros e um vídeo em que eu indico meus próprios livros me vestindo da forma mais Barbie possível. Esse último foi a coisa mais divertida que já fiz para divulgar meu trabalho.
Estou precisando de dinheiro, então resolvi voltar a oferecer dois serviços editoriais com os quais já trabalhei anteriormente: a leitura crítica, que lida com a estrutura narrativa, as cenas, diálogos e desenvolvimento de personagens; e a leitura sensível, que trabalha temas comuns a personagens que fazem parte de minorias sociais, com intenção de evitar a perpetuação de estereótipos e ideias nocivas. Eu trabalho especificamente com a representação de personagens negros e/ou bissexuais e narrativas com protagonismo feminino.
Se você precisa de algum desses serviços, pode entrar em contato comigo pelo e-mail lethyciadiascontato@gmail.com e me ajudar a continuar pagando as contas enquanto eu te ajudo a chegar numa versão melhor da sua história antes de você publicar. Para saber mais sobre como pedir um orçamento, visite meu site.
Vendi vários livros do meu desapego nos últimos dias, mas ainda tenho alguns disponíveis na minha lojinha na Shopee. Se você gosta de livros baratinhos, pode acessar lá e aproveitar os descontos no frete. Ou então, se quiser comprar diretamente comigo (sem deixar que uma plataforma internacional fique com parte do pagamento), pode me mandar um e-mail, que eu faço um precinho ainda menor.
Como eu gosto de lembrar em todas as edições da news, as compras feitas pelo meu link afiliado da Amazon também me ajudam bastante. Você pode acessá-lo pelo meu linktree se estiver lendo esta edição por e-mail. Se estiver no Substack, pode clicar em qualquer um dos links que eu deixo aqui para me ajudar enquanto faz suas compras.
Li, ouvi e assisti
No mesmo dia em que enviei a última edição da news, comecei a ler Mundo sem fim, de Ken Follet. É um romance histórico ambientado na Idade Média e uma continuação indireta de Os pilares da terra, que passei três meses lendo. Essa nova história se passa mais ou menos 200 anos depois da anterior e acompanha quatro personagens que, quando crianças, testemunharam um assassinato e juraram guardar segredo. Paralelamente a isso, os poderes da Igreja Católica crescem, e, pelo que vi na sinopse, a história deve incluir a pandemia de peste bubônica, que será vista como um castigo divino.
Logo após concluir a leitura de Sacrifícios humanos, comecei a ler Mandíbula, de Mónica Ojeda, outro dos livros que estou estudando no curso sobre horror. Esse é um romance sobre quatro adolescentes que estudam em um colégio católico de elite e que se desafiam a fazer coisas cada vez mais perigosas, e sobre a professora delas, que se esforça para se parecer com a própria mãe morta e sequestra uma das alunas. Está muito interessante e estou louca pra saber como vai terminar.
Disposta a continuar a pesquisa para o meu romance e me aprofundar mais no que senti lendo Tornar-se Negro, li também Por que eu não converso mais com pessoas brancas sobre raça, de Reni Eddo-Lodgi. Reni é uma ativista britânica negra e faz toda uma análise de como a sociedade do Reino Unido (não) lida com questões raciais. Ela reflete sobre como a história de pessoas racializadas no Reino Unido não é contada, a ponto de as pessoas acreditarem que toda pessoa não-branca por lá é imigrante; sobre privilégio branco; sobre o medo que pessoas brancas têm de pessoas negras tendo protagonismo; como raça e classe estão intrinsecamente ligadas; como as vivências de mulheres negras são ignoradas por feministas brancas; e sobre o que significa e o que não significa ser antirracista. Tudo isso depois de fazer um histórico incrível sobre como o colonialismo britânico e a Primeira Guerra Mundial fizeram com que pessoas não-brancas fossem largadas à própria sorte no Reino Unido.
Para respirar um pouco em meio a tudo isso, li também Uma segunda chance para você, um conto sáfico que se passa durante uma festa junina, e estou lendo A Mariana errada, também sáfico e também junino.
Antes mesmo de ir ao cinema, eu já tinha ouvido a playlist do filme da Barbie, que contém não apenas as canções originais, mas também músicas que se relacionam com as temáticas. Algumas delas grudam na mente e já estou ouvindo de novo. Também andei escutando a playlist Todo mundo vai sofrer, criada por Iris Figueiredo após um tweet em que perguntava às pessoas que músicas elas consideravam mais tristes.
No podcast 451 MHz, ouvi uma entrevista histórica concedida por Clarice Lispector para Marina Colasanti e Affonso Romano em 1976. Em metade do episódio, conheci Clarice de um jeito que nunca tinha visto antes. Ouça aqui. Outro podcast legal que escutei foi o mais recente de Gente!, onde Chico Felitti narra momentos especiais vividos por pessoas comuns. Nesse episódio, acompanhamos o primeiro show de uma drag queen chamada Ciano.
Assisti à biografia de Whitney Houston, I Wanna Dance With Somebody, e achei tão incírvel que emendei com o filme que ela estrelou nos 1990, O Guarda-Costas. Ambos estão disponíveis no Hbo Max. Também vi Love Film Festival, um filme brasileiro que está no Globoplay e é sobre uma diretora de cinema brasileira e um ator colombiando que se conhecem e se apaixonam durante o festival de cinema. É curtinho e bem gostoso de ver.
Encerro as indicações por aqui.
Um abraço,
Lethycia
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Poxa, é isso mesmo. Não querer usar uma roupa rosa para ver o filme não precisa automaticamente virar uma crítica a quem decide usar. O filme é demais e tá sendo lindo ver as salas de cinema cheias, não tá? Adorei a reflexão. Obrigada!
Maravilhosa a edição. Mesmo tendo lido muitos relatos sobre “Barbie” esses tempos, achei que vc trouxe o tema muito bem. Obrigada pelas indicações!