Identidade centro-oestina - Uma mulher que escreve #66
Poder se ver na ambientação de uma história também pode ser emocionante quando você vem de um lugar que não é aquele que dita os padrões culturais.
Olá, pessoas que leem!
Nos últimos dias, me peguei pensando bastante sobre identidade, regionalidade e pertencimento. Uma edição recente da newsletter de Fabiane Guimarães me fez lembrar de histórias da minha infância e adolescência de pessoa centro-oestina, e de como vir de onde venho influencia minha escrita. Hoje falaremos um pouco disso.
Eu não sei se existe alguma coisa que define o ser do Centro-Oeste. Talvez o apreço pelos ipês. Talvez a longa espera pela primeira chuva de setembro ou outubro após os meses de estiagem, que vêm com tempo frio a princípio e depois com calor quase insuportável. Talvez um passado de vir de algum lugar, uma família que veio de outro Estado em busca de vida melhor, ou uma necessidade de ir para, porque parece que a gente sempre precisa sair daqui pra conseguir alguma coisa.
Ser do Centro-Oeste também significa ser invisível, mas eu não acho que uma característica atribuída a nós pelas outras regiões brasileiras seja realmente algo nosso.
Lembro que a primeira história mais longa que escrevi¹, dez anos atrás, se passava em uma cidade qualquer dos Estados Unidos. Minha protagonista adolescente vivia como as protagonistas adolescentes dos livros e filmes estadunidenses que eu lia e assistia. Era um romance sobrenatural parecido com as histórias que eu lia naquela época, e eu me lembro de ter escolhido aquela ambientação porque histórias de fantasia sempre se passavam em lugares distantes, lugares onde nevava no inverno e onde as pessoas e coisas tinham nomes que eu não sabia pronunciar. E só fui perceber que existia alguma coisa errada nisso quando uma pessoa me questionou o porquê dessa escolha. Só muito tempo depois eu entendi meu motivo: parecia que nenhuma história interessante, bonita ou empolgante poderia acontecer nos lugares que eu conhecia. Eu nunca tinha lido nenhuma!
Com o tempo, o tipo de livro e filme que eu tinha acesso foi mudando e os meus gostos e interesses também. Comecei a ler mais literatura brasileira. Entendi como era gostoso ver uma expressão típica do nosso idioma na fala de um personagem ou como era afetivo ver a avó do protagonista insistindo para que comesse o lanchinho que ela tinha preparado. Que bonito ter alguma coisa em comum com os personagens dos livros, entender um trocadilho, ou uma referência cultural.
Mas qualquer referência ao lugar de onde eu tinha vindo ainda me deixava insatisfeita. Quando Brasília aparecia nas novelas e nos filmes era sempre para alguma cena sobre política, geralmente envolvendo corrupção. Sempre a imagem do Congresso Nacional, a única que as pessoas de fora do DF pareciam capazes de reconhecer sem uma legenda. Até a chegada de João de Santo Cristo na adaptação de Faroeste Caboclo parecia artifical, nem um pouco parecida com um desembarque na Rodoferroviária.
Eu tinha 22 anos quando li pela primeira vez um livro ambientado em Brasília. Era só uma parte de uma longa história narrada por cinco personagens, cada um deles localizado em um lugar e um tempo diferente. O que tinham em comum, além das feridas deixadas pela ditadura, era o fato de serem estudantes da UnB apaixonados por cinema. O fantasma de Luis Buñuel, de Maria José Silveira, mencionava uma Brasília muito diferente da que eu conheci - e mesmo assim, era muito mais real do que qualquer referência que eu tinha encontrado antes.
Existe uma coisa única em ler histórias que falam com você ou de pessoas parecidas com você. Como mulher negra e bissexual, eu sei muito bem disso. Mas se ver na ambientação também pode ser emocionante quando você vem de um lugar que não é aquele que dita os padrões culturais. Quando nem chega a existir um estereótipo de pessoas do lugar onde você nasceu, porque ninguém sequer lembra que existem pessoas vivendo lá. Identificação é isso. Eu já me emocionei lendo sobre o calor e a poeira do nosso período de seca, senti uma familiaridade imensa vendo as ruas da Asa Norte em Somos tão jovens; sorri com uma referência ao nosso inverno que envolve frio pela manhã e calor pela tarde e ao nosso verão que significa chance de chuva a qualquer momento; e sinto um orgulho maior do que qualquer outra coisa quando penso em quantas histórias ainda não contadas eu posso oferecer só com a escolha de um lugar para ambientar minha escrita.
Centro-Oeste em livros
Veias e Vinhos é um romance de Migual Jorge ambientado em Goiânia e inspirado num caso de assassinato de uma família inteira ocorrido nos anos 50;
A parede branca do meu quarto é um romance jovem adulto ambientado em Brasília;
Morte Agalopada, de Ton Borges, é uma novela ambientada no interior do Mato Grosso que junta realismo mágico e folclore para discutir identidade;
Crônica em movimento, de Amanda Sales e Juliana França, reúne crônicas baseadas em histórias ouvidas no transporte coletivo de Goiânia.
Flores no quintal, de Laurenice Noleto, é um livro de memórias da autora sobre sua militância política e sobre o período da ditadura em Goiás, além de mencionar bastante como era a vida em Goiânia nos anos 60 e 70.
Cidades afundam em dias normais, de Aline Valek, se trata de uma cidade fictícia no meio do Cerrado que foi submersa por um lago e que volta à superfície durante um período de seca. Está na minha lista de futuras leituras desde que teve sua capa divulgada.
Você encontra outras recomendações de leitura tão interessantes como essas no episódio O Centro-Oeste escreve, do podcast Entre Sumários. Participei junto com Arthur Malvavisco e falamos das nossas referências locais e de investimentos governamentais em literatura.
Li, ouvi e assisti
Terminei de ler O nome dela é Sophia e é um romance dramático sobre identidade, exposição midiática e sobre como a visão que os outros têm de nós influencia em como nós nos vemos. A protagonista, Priscila, é uma atriz em ascenção que sempre foi sexualizada e que tem sua vida modificada ao conhecer Sophia, uma atriz trans em seu primeiro papel numa novela. As duas passam por maus-bocados juntas e precisam superar os próprios traumas para levar seu relacionamento adiante.
Ainda estou relendo Os pilares da terra e sei que não vou terminar tão cedo. Continua tão interessante quanto eu me lembrava. Após concluir A vida não é útil, comecei a ler Pachinko, o romance de Min Jin Lee que acompanha várias gerações de uma mesma família coreana vivendo no Japão. É uma história sobre imigração, colonialismo, pertencimento e dramas familiares. Tem sido só tristeza desde o início, mas estou adorando!
Estou ouvindo todos os álbuns da Gal Costa disponíveis no Spotify - coisa que eu queria ter feito antes da morte dela. No fim de semana passado, errei uma questão de conhecimentos gerais numa prova de concurso a respeito dela, de Gil, Caetano e Bethânia e me senti a verdadeira VERGONHA DA PROFISSÃO entre os fãs de MPB.
Pelo menos fui bem na prova.
Nos últimos dias, assisti O guardião invisível, um thriller espanhol que me surpreendeu bastante e que tem duas continuações na Netflix, e Imagine eu e você, uma comédia romântica sáfica com uma noiva que se apaixona pela florista responsável pela decoração do casamento. Encontrei pelos “meios alternativos”. E por falar nisso, uma thread com links para filmes sáficos disponíveis no Drive passou pela minha timeline e eu acho que vou morar nesse acervo durante as próximas semanas.
Outra indicação que deixo aqui é a série Os imortais do Brasil, que adapta contos de autores clássicos brasileiros na forma de curtas. Por enquanto assisti pelo Prime Video As mãos do meu filho, que é um pouco melodramático, porém uma boa adptação do conto de Érico Verissimo, e Uns braços, que tem uma ambientação e uma narração que me fizeram sentir como se estivesse mesmo lendo. Esse é inspirado em um conto do Machado de Assis do qual eu sinceramente não me lembro. Os outros títulos são Os óculos de Pedro Antão, O crime e o burguês, O madereiro, O fim de Arsênio Godard, O milagre dos pássaros e O Estigma, e eu ainda quero assistir. Por algum motivo, não está disponível no Brasil no formato série, com episódios pra ver um depois do outro, mas sim como filmes sem relação entre si, então para encontrar na busca do Prime, é necessário pesquisar os títulos um por um.
Eu fico por aqui.
Um abraço,
Lethycia
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¹Essa história está devidamente escondida do mundo e nunca vai sair da gaveta. Graças a Deus eu ainda não sabia como publicar naquela época e quase ninguém pôde ler as bobagens imaturas que eu escrevi aos 13 anos.
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