Leitores que não querem ser surpreendidos - Uma mulher que escreve #86
Comportamentos de escolha de leitura que eu não consigo entender, ou: do que estamos abrindo mão com tanta facilidade?
Olá, pessoas que leem!
Nos últimos dias, ando meio pensativa sobre alguns comportamentos envolvendo leitura, e como gostar de ler foi principalmente o que me levou a escrever e a ter esta news, quero falar disso aqui. Pega uma água, um café e vamos refletir um pouquinho.
Ter contato com outros leitores pelas redes sociais me levou a entender há bastante tempo que na hora de decidir se um livro é interessante, existem dois tipos de pessoas: tem aquelas que leem sinopse, resenhas, blurbs (aqueles comentários de outros autores ou de grandes jornais inseridos na capa de um livro); e aquelas que preferem ser surpreendidas e não leem sinopse, quando muito assistem a um vídeo de resenha ou indicação, desde que não haja spoilers. Às vezes, essa pessoa é um pouco mais radical e não procura absolutamente nada, vai pela capa, título e nome de quem escreveu e é isso mesmo. Caos total.
Acho que já deixei claro de que tipo eu sou. Como não tenho muito dinheiro disponível para comprar livros e já me arrependi muito de compras impulsivas, eu penso bastante antes de decidir se quero ler alguma coisa. Posso ver um tweet de uma pessoa dizendo que um livro mudou a vida dela, e ainda assim eu vou abrir a página dele na Amazon, ler a sinopse inteira, talvez ler umas avaliações e até abrir a amostra pra ver se curto mesmo. E você acha que se a resposta for “sim”, eu compro na mesma hora? Não, eu enfio o livro numa lista de desejados e espero por uma promoção que me permita pagar por ele. E se a promoção rolar, eu ainda penso mais um pouco!
Tenho uma Nath Finanças num dos meus ombros e um Julius no outro me perguntando se eu preciso mesmo gastar dinheiro com isso…
Mas tenho observado nas redes sociais um comportamento um tanto diferente, que foge dos dois extremos. Não sei bem como começou, quando foi que as pessoas ficaram assim, só fico observando espantada. De uns tempos pra cá, as divulgações de livros por trope ficaram cada vez mais populares - o que não é um problema, é uma forma simples e direta de fazer com que o livro chegue até o público certo, ainda mais quando existe limite de caracteres.
Mas parece que os leitores se acostumaram com essa “facilidade” de um jeito não muito saudável. Parece que de tanto ver livros sendo divulgados como “friends to lovers, segunda chance e só tem uma cama”, “chefe e secretária, haters to lovers e aproximação forçada”, “melhor amigo do irmão, gravidez inesperada e não tem término no final”, as pessoas deixaram de ler sinopses ou passaram a se orientar apenas por esses indicativos como critério de decisão.
Comentários como “Esse livro parece legal, mas não curto essa trope, então não vou ler”, ou “Quais são as tropes?”, quando a divulgação não contém uma lista delas estão cada vez mais comuns.
As tropes são bem frequentes em histórias de romance, mas também existem em outros gêneros (a fantasia tem as suas próprias, como a profecia, o escolhido, etc), e o costume de inserir uma lista delas logo abaixo da sinopse vem dos sites de fanfics, onde é normal querer saber em que tipo de narrativa você vai encontrar o vocalista da sua boyband favorita. Quando as tropes passaram a ser usadas para divulgar livros de ficção nas redes sociais, funcionaram igualmente bem.
Mas essa semana, viralizou um vídeo em que uma “querida” fala não apenas de querer saber todas as tropes de um livro antes de ler, mas também que gostaria que livros publicados contivessem, antes da história em si, um tipo de lista detalhada dos acontecimentos principais e secundários, para que o leitor pudesse saber de tudo previamente, evitando correr o risco de se deparar com algo de que não gosta ou se surpreender com algo que não sabia que aconteceria. Tem gente estranhando e questionando, mas também muita gente concordando, sempre naquele tom bem “moderado e gentil” que as redes sociais nos proporcionam.
Isso é diferente dos avisos de conteúdo, que alertam sobre a abordagem de temas sensíveis como violência, depressão, preconceitos e outras questões que podem tornar uma leitura complicada pra muita gente. É além disso. É como querer saber, antes de ler, se na metade do livro a mocinha vai mudar de emprego, se desentender com o namorado, comprar roupas por impulso no shopping ou quebrar o salto enquanto corre pelo aeroporto para implorar que o amor da vida dela não vá embora.
Como alguém acostumada a ver pessoas brigando umas com as outras porque receberam spoiler de uma série ou mesmo reclamando de prefácios que revelam acontecimentos de livros publicados 200 anos atrás, me espanta perceber essa preocupação tão grande em querer saber de tudo antes.
Veja bem, é normal querer saber do que um livro se trata antes de começar a ler ou como os temas serão abordados. Normalmente a gente descobre isso conversando com um amigo que já leu ou lendo a sinopse ou uma resenha. É pra isso que elas servem. Mas não querer se surpreender de forma alguma me parece um desperdício de uma das experiências mais legais que a leitura nos proporciona.
Tipo: como você não quer encontrar nada diferente, nenhuma emoção inesperada ou desconhecida, nenhum insight sobre algum assunto que ainda não tinha pensado antes? Só é válido e legal aquilo que você já conhece e gosta e nada que seja novo pode ser aproveitado?
Me parece que as pessoas estão abrindo mão de coisas muito preciosas!
Metade da minha de leitora foi bem solitária. Eu conhecia pouquíssimas pessoas que gostavam de ler e só tinha acesso a livros pela biblioteca dos colégios que frequentava, e passava boa parte do meu tempo dentro desses ambientes percorrendo as lombadas dos livros com os dedos, até que um título me chamasse a atenção e eu pegasse aquele livro para saber do que se tratava. Foi assim que comecei a ler O tempo e o vento, a saga de Erico Verissimo que por muito tempo foi a minha história favorita na literatura brasileira.
E quanta coisa incrível eu conheci porque tive a curiosidade de pegar um livro e ler as primeiras páginas, quantas histórias me tragaram noite adentro sem que eu tivesse a menor ideia do que esperar, apenas ansiando por mais daquilo…
Hoje, essa sensação que eu tinha dentro das bibliotecas de estar prestes a descobrir um tesouro ainda é algo que eu tento reproduzir quando entro num sebo - um lugar onde algoritmo nenhum vai tentar prever o que me agrada.
É claro que há vezes em que eu quero ler um livro que não me exija muito, um romancinho que sei que vai me fazer rir e shippar o casal e ter final feliz, e sim, eu li vários livros exclusivamente pela trope enquanto me preparava para escrever meu haters to lovers universitário.
Tem horas que tudo que a gente quer é um livro que deixe nosso cérebro lisinho como um peito de frango, o que não me faz deixar de gostar dos livros cabeçudos e cheios de reflexões filosóficas.
Não existe uma oposição entre as duas coisas, gostar de uma não impossibilita gostar da outra, e me assusta muito ver pessoas abrirem mão tão facilmente da surpresa como se a previsibilidade já oferecesse tudo de bom, e fora dela, não houvesse mais nada.
Uma das melhores coisas na literatura é a possibilidade de emocionar, despertar catarses, nos fazer encarar aquilo que ignorávamos ou tentávamos esconder de nós mesmos, espelhar aquilo que nos encanta e assusta. E eu não vejo como é possível viver isso fugindo de qualquer coisa que pareça minimamente diferente daquilo com que já estamos acostumados.
As últimas
Na semana em que enviei a última edição regular, eu já estava escrevendo num ritmo bem lento. Havia percebido mais um furo no haters to lovers universitário e chegado a conclusão de que o meu roteiro, escrito às pressas, estava cheio deles. Tive que encarar a ideia desagradável de que, se eu quisesse continuar escrevendo e ter uma história divertida e bem contada no final, precisaria cortar o mal pela raiz, isto é, corrigir o roteiro.
É o que estou tentando fazer desde então, na esperança de poder retomar a escrita e terminar a história com tranquilidade. Já escrevi uma boa parte dela, mas quanto mais eu escrevia, tentando ajustar na hora os problemas que encontrava, mais causava novos problemas.
Fico um pouco triste em perceber isso depois de finalizar uma história como Nosso próximo adeus será o último, que fluiu tão bem de outubro a dezembro, mas acho que são os ossos do ofício.
A promoção dos meus livros da semana passada foi bem, com um total de 17 unidades vendidas. É o que vai me garantir algum pagamento em maio, porque a quantidade de páginas lidas, em compensação, está horrível esse mês.
A leitura coletiva de De todas as paradas do mundo rendeu uma conversa super bacana via meet no último domingo (17), e eu amei ter esse contato direto com leitores. Deixo aqui um print dessa call.
Li, ouvi e assisti
Terminei de ler Número Zero e estou chegando ao final de O caminho que me leva até você. O segundo é um romance de segunda chance entre um piloto de fórmula 1 e uma repórter esportiva que estudaram no mesmo colégio de elite e foram namorados durante a adolescência e se reencontram no auge de suas carreiras, cinco anos após um término doloroso. Essa história está mexendo comigo mais do que eu esperava, porque a mocinha desse romance passa por questões como abandono afetivo dos pais, dependência emocional de um namorado babaca (o que leva a um relacionamento abusivo), além de um trauma horrível com um trote racista na faculdade. Eu só queria ver dois pretinhos ricos e bem-sucedidos se amando, sabe?
Estou lendo também Racismo estrutural, de Silvio Almeida, e A grande chance Ana Luna, de Thati Machado. Ainda estou bem no início dos dois, mas quanto ao primeiro, faz parte da série “Feminismos Plurais”, organizada por Djamila Ribeiro, e desde a introdução já deixa claro que não se trata de “um tipo” de racismo, mas sim do fato de que o racismo é um fator estruturante das sociedades modernas. Fiquem com um trecho que não pode ser mais claro:
A tese central é a de que o racismo é sempre estrutural, ou seja, de que ele é um elemento que integra a organização econômica e política da sociedade. Em suma, o que queremos explicitar é que o racismo é a manifestação normal de uma sociedade, e não um fenômeno patológico ou que expressa algum tipo de anormalidade. O racismo fornece o sentido, a lógica e a tecnologia para a reprodução das formas de desigualdade e violência que moldam a vida social contemporânea. De tal sorte, todas as outras classificações são apenas modos parciais – e, portanto, incompletos – de conceber o racismo.
Trecho da página 15
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Andei ouvindo várias playlists de rock, e no momento, estou apaixonada por uma que reúne mulheres do jazz e já começa com a maravilhosa Diana Krall, que eu amo!
Dos podcasts que acompanho, amei a segunda metade do episódio A parte que falta, da Rádio Novelo Apresenta, com a história de um cara que listava os nomes de quem beijou e conseguiu completar o alfabeto com um beijo pra cada letra. Faltava encontrar um moço com a letra Q, e só valia no primeiro nome, sem ser sobrenome, apelido ou a segunda palavra num nome composto, e ele conseguiu após anos de dedicação. Quem ficou curioso pode ouvir aqui.
Concluí minha maratona do Oscar no dia 09, o sábado anterior ao dia da cerimônia de premiação, porque não consegui assistir a nada no dia propriamente dito. E dessa vez, a cerimônia não foi nem de perto tão divertida quanto costumava ser. Pra além do fato de Oppenheimer ter levado em várias das categorias, até naquelas em que havia outro favorito, a Hbo Max, que estava fazendo a transmissão no Brasil, escolheu privilegiar os comentários de três apresentadoras que pouco entendiam de cinema, cortando a maior parte do evento em si.
A gente tinha que ficar lá acompanhando o papo desinteressante delas, e perdia aqueles momentos legais da plateia, das trocas de olhares e reações. Até os monólogos entediantes ou piadas ruins do apresentador da vez fizeram falta, viu. Teve um momento que a transmissão simplesmente cortou o anúncio dos concorrentes de uma das categorias e a caminhada até o palco de quem estava sendo premiado. Um horror.
Se fosse só pra saber quem ganhou cada categoria, sem ver mais nada do evento, eu deixaria pra ler as notícias no dia seguinte.
Mas em relação ao que vi, destaco o documentário As 4 filhas de Olfa, que conta de forma bem interessante a história de uma família tunisiana formada por cinco mulheres, culminando no desaparecimento das duas filhas mais velhas, cuja ausência é apenas mencionada no início. Você nunca vai imaginar o que aconteceu com elas.
No fim de semana passado, assisti finalmente ao aguardado Priscilla, com as memórias de Priscilla Preslley, e o filme é mais interessante do que a própria biografia do Elvis. Sou suspeita pra falar, porque gosto muito dos filmes da Sophia Copolla, mas amei! Está disponível na Mubi, e quem quiser assistir, pode experimentar o streaming com 1 mês de teste grátis.
Se gostou do que leu aqui, se tem opiniões sobre os novos hábitos de leitura da galera cronicamente online, se gostou das minhas recomendações - ou quer me fazer alguma, você pode deixar um comentário! Eu vou adorar ler, e prometo responder quando puder.
Um abraço,
Lethycia Dias
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É o "botão" de acelerar para 1,5x ou 2x, só que em livros.
Eu sou do time "equilíbrio é tudo"! Eu assino o Turista Literário e sou surpreendida todo mês com livros ya que mesmo assim estão fora da minha zona de conforto. Mas estou tão exausta de tanto trabalho que no fim do dia eu quero ler um livro de romance com qualidade duvidosa que me entregue tudo o que promete nos tropes antes da sinopse do kindle unlimited, apenas pra desligar minha cabeça um pouco hahahahaha eu até brinquei esses dias "me diga tudo o que vai acontecer sim, eu não quero pensar". Mas se for pra ver meu comportamento de compra de livro - de fato, e não o que consigo ler pelo kindle unlimited porque aí acho que isso entra em uma categoria diferente de compra de livro, tipo comprar com dinheiro x comprar com cartão/pix - eu jamais vou comprar só pelo plot ou pelo trope. De toda forma, acho que o modo como a gente consome livros tá mudando a partir de como a produção de conteúdo sobre isso está sendo feita e vice-versa.