Mapa mental - Uma mulher que escreve #98
Sobre preencher lacunas e não deixar que o desconhecido se torne maior do que nós
Olá, pessoas que leem!
Não sei se vocês já viveram pelo menos uma vez na vida a experiência de se mudar para um lugar completamente desconhecido. Ter a sua vida toda transportada para um outro lugar, sem referencial nenhum, e precisar reaprender a fazer tudo ali. E pior, passar por isso muito cedo, quando você ainda nem sabia direito como fazer tudo lá onde você morava antes.
É uma ruptura muito grande, e comigo, aconteceu quando minha mãe trouxe a mim e ao meu irmão de Brasília para Goiânia¹, no fim de 2011. Eu tinha 14 anos e já tinha ouvido todo tipo de história assustadora sobre andar de ônibus em Goiânia na primeira vez que a minha mãe me pediu para que eu e meu irmão a encontrássemos no Centro, depois de ela ter saído do trabalho.
Pra começar, o ônibus era diferentão, comprido, com várias portas e uma “sanfona” no meio, e você não precisava puxar cordinha nem apertar botão pra pedir pra descer, porque o Eixo Anhanguera para em todas as paradas - eu me recuso a chamar de pontos -, em plataformas elevadas chamadas de "estações”. Para meu espanto, as pessoas pagavam para entrar nelas, e podiam descer de um ônibus e entrar em outro, no sentido contrário ou no mesmo sentido, sem pagar outra passagem!
Eu ainda não sabia, mas esse tipo de transporte é conhecido como BRT, e seria implantado em Brasília, com linhas novas em direção a algumas das cidades-satélite, depois que saímos de lá.
E havia também os terminais, que eram como rodoviárias, mas você também pagava para entrar naquele espaço físico, e não nos ônibus, e as pessoas se empurravam como gado diante de uma porteira aberta para entrar em cada coletivo. Bem diferente da Rodoviária do Plano Piloto, por onde eu, minha mãe e meu irmão passávamos todo sábado para pegar o ônibus em direção ao Gama quando íamos visitar a Vó Hilda. Ali, uma fila se formava em frente à baia de cada linha de ônibus, e quando eles estacionavam, as pessoas entravam calmamente pela porta dianteira, e pagavam a passagem, com dinheiro ou vale, para um cobrador².
Em Goiânia não existiam cobradores. Minha mãe tinha me explicado, repetidas vezes, o quanto o bilhete³ eletrônico do sitpass era frágil, e como não podia ser amassado, senão não serviria mais para enfiar na máquina sobre a catraca dos ônibus.
Ela também havia me dito por quais terminais o Eixo Anhanguera passaria, e quantas estações percorreria, até chegarmos àquela em que teríamos de descer, em frente ao Bandeirante sobre seu pedestal, no cruzamento com a Avenida Goiás. Entretanto, ela mesma era nova na cidade e ainda não havia decorado os nomes de todas as estações, e eu me enganei na conta, e achei que precisaríamos trocar de ônibus pela segunda vez no caminho. Por isso é que chamei meu irmão para descermos no terminal Dergo, sem desconfiar que ainda estávamos muito longe do nosso destino. Ao perceber o engano, entramos em outro Eixo, e permanecemos olhando atentamente as janelas e tentando reconhecer os pontos de referência que nossa mãe havia enumerado, até chegarmos ao lugar certo.
Eu não sei quando decidi que não deixaria esse cidade me engolir. Que não me deixaria perder e desesperar no meio daquelas ruas com nome de gente que eu nem sabia quem tinha sido, tão diferente da lógica de letras e números de Brasília.
Nos anos que se seguiram, me dediquei a tentar compreender a bagunça daquelas ruas e avenidas, daqueles cruzamentos e pontes e praças e viadutos. Quando ia de ônibus a algum lugar novo, deixava de ler o livro que estivesse levando na bolsa para ficar bem atenta às janelas, lendo placas de rua e descobrindo que ora cruzava um bairro cujo nome já tinha ouvido falar no jornal, ora passava por um lugar completamente estranho.
Pelo Google Maps, eu descobria o trajeto que precisaria fazer para chegar a determinado lugar, qual ônibus pegaria, quanto tempo levaria e até por quantos minutos teria de andar depois de descer. Quando tinha de ir a algum lugar bem distante, eu gostava, apesar da demora e do cansaço: aproveitava para descobrir as linhas que passavam por ali, decorar as combinações de números, os nomes dos terminais, e principalmente, ver pedaços da cidade completamente opostos ao lugar onde moro. Bonitos, organizados, com jardins, praças e prédios. Sem lixo acumulado ou mato chegando à altura dos muros.
Nas raras vezes em que andava de carro, fosse de Uber, quando o serviço chegou à cidade, ou de carona, quando era possível, eu descobria como os caminhos podiam ser diferentes para quem tinha a opção de escolher para que lado virar nas esquinas. Eu não fazia ideia de que era possível ir do Setor Bueno até a Praça Cívica tão fácil pela Avenida 85, já que para ir até o Parque Vaca Brava eu precisava pegar o 011, no Terminal Praça A, e para ir ao Centro só precisava continuar dentro do Eixo e depois subir a Avenida Goiás. Não sabia que podia chegar a algum lugar sem passar pela rodovia GO-060, até que uma corrida de Uber me mostrou o que existia no outro lado do Morro do Mendanha - e descobri que alguns lugares podem ser assustadores até pra quem mora em um bairro pobre e com má fama.
De repente, eu conhecia caminhos, alternativas, e sabia que se você quer evitar passar por um lugar, pode pegar aquela outra linha de ônibus, mas se quer ir mais rápido, pode pegar essa aqui, e muitas vezes quando minha mãe me pedia para pesquisar como chegar a um estabelecimento, às vezes eu sabia informar sem precisar acessar a internet.
Se o sistema de endereços com rua ou avenida, número e nome do bairro - em oposição à ordem tão própria das ruas do Distrito Federal - havia sido a maior dificuldade da minha mãe após a mudança, eu havia me esforçado para compreender e dominar esse código. Para não deixar que fosse maior do que a minha existência nessa cidade. Não queria passar pelo mesmo que a minha mãe que, em sua primeira vez andando de ônibus na cidade nova a caminho de uma entrevista de emprego, se perdeu, e desesperada, passou mal, sendo socorrida com a pressão altíssima. Ouvir essa história da boca dela deixou em mim uma impressão terrível, de que, se eu não domasse a cidade, seria dobrada e esmagada por ela.
Eu não poderia deixar que isso acontecesse. Já havia perdido coisas demais apenas no ato de me mudar.
Hoje, trabalhando no extremo oposto da região onde moro e fazendo um trajeto de 1 hora e 45 minutos na ida e um tanto mais na volta, sinto cada vez mais que cumpri esse objetivo. Me habituei à cidade de forma que ela não mais me assusta, que algumas coisas nela são previsíveis e até esperadas pra mim. Nunca me senti alguém daqui, nunca passei a me sentir em casa, mas dominei as ferramentas para que Goiânia não se tornasse um monstro.
Nos meus primeiros dias no trabalho atual, me peguei observando bastante a cidade pela janela do ônibus durante meus longos trajetos de ida e volta. Identificando aqui e ali mais alguns lugares dos quais já tinha ouvido falar. Preenchendo mais algumas lacunas desse grande mapa mental que precisei ir construindo com o passar dos anos. Como quando você faz um cavaleiro se deslocar por longas distâncias para reconhecer o terreno no Age of Empires e vai vendo o mapinha aparecer aos poucos no canto inferior da tela.
(Desculpem a referência a esse jogo de computador ultrapassado, mas é um dos poucos que eu sei jogar).
Ainda há coisas na cidade que eu não conheço, é claro. Lugares que nunca visitei e experiências que nunca tive porque não são feitas para quem mora onde eu moro. O túnel de luzes da Praça Tamandaré em dezembro? Nunca nem vi! Não tenho motivos para passar por essa praça à noite, e não, eu não sairia de casa só pra isso. Pit Dogs da 10? Meu anjo, por que eu atravessaria meia cidade só pra comer um lanche que nem vai ser tão bom assim? E eu sinceramente não entendo qual a dificuldade em usar a palavra lanchonete, que é o nome para lugares onde se vende lanche.
¹Esse texto seria enviado na edição passada (23/10), mas isso teria acontecido exatamente na véspera do aniversário de Goiânia, e eu detestaria passar a mais remota impressão de que gosto dessa cidade. Assim, substituí a pauta de última hora pelo assunto do terror e horror.
²Em setembro deste ano, o sistema de transporte público do DF iniciou um processo de transição para deixar de receber pagamento de passagens em dinheiro. Quanto ao vale-transporte de papel que minha mãe usava na minha infância, eu nunca mais o vi, e não sei quando deixou de ser usado.
³O bilhete eletrônico do sitpass utilizado no transporte público de Goiânia foi descontinuado há alguns anos. Atualmente, o pagamento é somente por cartão.
Fixando residência
“O colapso do pássaro e ascensão da borboleta” - uma expressão que parece nomear uma mudança de governo em algum livro de fantasia, mas foi usada por Ana Carolina.txt para se referir ao bloqueio do Twitter e migração em massa de brasileiros para o Bluesky - já foi assunto numa edição recente desta news, e hoje venho atualizar minha decisão pessoal em relação a qual microblog continuar usando.
No início de outubro, o X (ou Twitter, como prefiro continuar chamando) voltou a funcionar no Brasil após o atendimento das exigências legais que a Justiça brasileira vinha fazendo. Isso de certa forma dividiu a minha bolha entre quem estava disposto a continuar na plataforma “nova” e quem preferia ou precisava voltar à antiga. Eu já estava bem acostumada ao Bluesky, e vinha gostando de lá, mas não podia negar o quanto a comunidade literária era forte no Twitter e nem o meu medo de perder isso.
Dessa forma, decidi transformar o Bluesky na minha rede principal, mas continuar entrando ocasionalmente no Twitter para fazer divulgações. E quando eu entrava ali, na rede que por tanto tempo tinha sido não apenas uma ferramenta de trabalho, mas também uma espécie de vício pra mim, cada vez mais eu percebia que as coisas por ali já não eram mais as mesas.
Os dias de bloqueio derrubaram o alcance de contas brasileiras. Todo mundo estava reclamando do engajamento, e se o meu ali já era baixo, parece ter atingido um nível negativo. Dos tweets que postei nos últimos dias, apenas um teve um número razoável de curtidas e compartilhamentos. Eu estava criticando um post viral de outra pessoa, o que diz muito sobre o tipo de conteúdo que o Twitter propaga. Divulgação do seu trabalho? Não, ninguém vai ver isso! Tretas, fofocas, discussões bobas? É disso que o povo precisa!
Achei que duraria só alguns dias, mas já faz quase um mês que as coisas estão assim, e sinceramente, não faz sentido divulgar meus livros e links afiliados sem ter retorno.
Além disso, os dias que passei online numa plataforma com número de usuários menor e moderação de conteúdo bem melhor também me fizeram perceber o quanto estar no Twitter era estressante pra mim. Basta rolar a timeline por alguns minutos para me deparar com posts explicitamente racistas, misóginos, LGBTfóbicos, pessoas impondo suas verdades sobre relacionamentos, roupas, estilo de vida, gosto musical. Sem falar na poluição visual gerada pela grande quantidade de anúncios, incluindo aqueles que você não pode remover porque é impossível bloquear quem postou.
É claro que tudo isso existe em outras redes sociais, em maior ou menor escala e também pode chegar ao Bluesky. Mas não é à toa que o Twitter era considerado como um lugar para saber rapidamente sobre as coisas. Tudo ali é amplificado. Os racistas de lá parecem mais racistas. Os nazistas, também. Os homens misóginos parecem ter concordância até de mulheres. Os crentes chatos são ainda mais chatos. As notícias ruins sobre política parecem ainda mais assustadoras, alarmantes, como se não existisse mais esperança para minorias e pessoas progressistas e de esquerda.
Uma lógica feita para te assustar, provocar e irritar, para te fazer discutir e brigar com o máximo possível de pessoas, sem tempo para respirar ou fazer qualquer outra coisa entre as roladas de tela.
Comecei a me perguntar o quanto isso vinha me fazendo mal antes do bloqueio, sem que eu percebesse.
Como se faltasse mais alguma coisa para me fazer tomar uma decisão definitiva, dois anúncios recentes me mostraram que a plataforma se tornaria ainda mais nociva pra mim e contrária aos meus princípios.
No fim de outubro, o Twitter mudou sua política de bloqueio de usuários, e agora, uma pessoa bloqueada pode continuar vendo os posts de quem a bloqueou, sem poder interagir. A pessoa que bloqueia também pode continuar vendo os posts da pessoa bloqueada, o que não faz sentido para quem bloqueia usuários específicos com intenção de deixar de ver aquilo que publicam.
Outro comunicado recente dizia que a partir de 15 de novembro, todo conteúdo postado ou reproduzido por usuários do Twitter seria utilizado para treinamento de inteligência artificial, independente de autorização.
“Ao enviar, postar ou exibir Conteúdo nos ou através dos Serviços, você nos concede uma licença mundial, não exclusiva e livre de royalties para disponibilizar seu Conteúdo ao resto do mundo, “incluindo, por exemplo, para uso no treinamento de nossos modelos de aprendizado de máquina e inteligência artificial, seja generativa ou de outro tipo”.
Já fazia algum tempo que as postagens de usuários eram usadas com essa finalidade, mas antes, era possível desativar o recurso. Agora, nem isso. É uma violação total da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, a LGPD, mas o que é isso para uma plataforma que desafiou as leis brasileiras por meses, não é mesmo?
Essa foi a última pá de cal em cima da cova do finado Twitter para muitos artistas que eu acompanho, e foi o que eu precisava para decidir deixar esse rede social de vez. Imagine que cada foto, cada ilustração, cada fancam ou piadinha já postada serão utilizadas para treinar IA’s generativas que mastigarão, misturarão e depois regurgitarão a sua selfie, a fanart que você postou do seu personagem favorito, o vídeo que você fez pra divulgar seu trabalho, em forma de conteúdos de procedência duvidosa, com informações possivelmente adulteradas, gerando uma nova imagem ou vídeo ou texto, sem dar um único crédito a ninguém.
Para quem trabalha com ilustrações, continuar no Twitter significa ter o seu trabalho roubado e transformado em uma outra coisa, de qualidade ruim. É um risco não só para ilustradores, designers e capistas, mas também para escritores e divulgadores literários, uma vez que até mesmo postar as capas ou trechos de nossos livros pode nos expor ao uso não-autorizado de nosso trabalho.
Como bem pontuou a usuária Clarissa Paiva, no Bluesky,
A ia generativa é a síntese metafórica do que a sociedade valoriza e o que ela quer.
Ela quer o resultado final do nosso trabalho e tudo que pode proporcionar ($), ao mesmo tempo que não quer que a gente exista
Ao ser lembrada de que a “proletarização” é um risco que todo profissional liberal corre no capitalismo, a mesma usuária explicou como o abismo é ainda mais profundo para nós, artistas:
Isso é lógico pras profissões todas. Mas só fazendo um adendo aqui pq a percepção social de quem é artista não é essa de profissional liberal, a gnt nao é visto como classe trabalhadora como qq outra
Pra muita gnt, artista é visto como vagabundo mesmo E com a AI é q a coisa fica mais sinistra pq […]
Recomendo ler o fio inteiro.
Ter os próprios dados usados dessa forma também é um risco para usuários comuns. Muita gente não se importa, é claro, mas deveria.
E é por isso que antes do dia 15, irei deletar minha conta no Twitter. É claro que eu não posso controlar o que outras pessoas farão por lá, e sempre é possível que alguém inocentemente poste um trecho de um dos meus livros só pra dizer o que está achando da história. Mas, se for para ter meu trabalho utilizado com finalidades que eu desconheço, eu prefiro pelo menos não colaborar com o mecanismo que permitirá isso.
Vou continuar no Bluesky. E no Instagram. E aqui. E no meu site profissional. E no meu canal no Telegram. E sinto que não vou perder muita coisa com essa escolha.
Li, ouvi e assisti
Terminei de ler Este é o mar e Joyland. Li, por inteiro, Minha irmã a serial killer, e Um buraco com meu nome. O primeiro é um drama psicológico sobre a complicada relação de Korede, uma responsável irmã mais velha que se sente obrigada a ajudar a irmã mais nova, Ayoola, a encobrir os assassinatos de seus namorados. O segundo é a primeira antologia de poesia de Jarid Arraes e é um soco no estômago ao falar de raça, classe e gênero.
No momento, ainda estou lendo Entrevista com o vampiro junto com 20 contos e uns trocados, de Nei Lopes, e Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo. Ambos, assim como Um buraco com meu nome, fazem parte das minhas escolhas para o Bingo Lit Negra de 2024, um projeto que incentiva a leitura de livros escritos e protagonizados por pessoas negras. Eu participo do projeto há anos! Se achou a ideia interessante, você encontra nesse site todas as informações e também a cartela de desafios desse ano.
Estou ouvindo o podcast Clareira, um projeto do selo Seiva, da editora Antofágica. Cada episódio é uma conversa com um ou mais convidados sobre temas ligados a criatividade. O episódio A viagem para dentro de si, com Paula Sebra, fala da importância de conhecer a si mesmo para poder criar, e eu amei cada palavra do que ela disse!
Ainda na minha maratona de filmes de terror e horror, voltei a assistir a um filme que me dava muito medo na minha infância. Scooby-Doo na ilha dos zumbis é muito bom enquanto história de terror e mistério, e também como animação. Está disponível na Max, e embora não tenha dublagem disponível, o idioma original não tirou nem um pouco da nostalgia pra mim!
Gostou das indicações que fiz aqui? Se identificou de alguma forma com a minha experiência na primeira parte da news? E o que você acha de toda a situação envolvendo o Twitter? Deixe um comentário! Talvez eu não saiba como responder, mas vou adorar ler!
Eu fico por aqui.
Um abraço,
Lethycia Dias
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