Música ao vivo e catarses coletivas - Uma mulher que escreve #89
Jão, Madonna e aquilo que a música nos ajuda a arrumar por dentro ou colocar pra fora
Olá, pessoas que leem!
Eu queria ter enviado este texto no dia 1º de maio, ou um dia antes ou depois, ou na quarta-feira seguinte. Mas quando chegou o dia 1º eu não sabia o que escrever, e alguns dias depois, eu ainda não sabia. Precisei transformar o que vou dizer aqui num assunto da minha terapia, antes de poder falar a respeito com vocês. Agora, eu consigo. Então, temos um texto.
No último final de semana de abril, eu vivi uma experiência coletiva emocional que foi maior do que eu mesma. Passei dias pensando sobre o que vivi, e na semana seguinte, vivi outra coisa parecida. Os sentimentos eram diferentes, o contexto também, mas o catalisador foi o mesmo: música. E eu não podia deixar de falar sobre isso.
O menino do interior¹
Em janeiro deste ano, decidi que iria a um dos shows da Superturnê de Jão Romania. Eu tinha recebido dois valores em dinheiro inesperados, estava me organizando financeiramente há alguns meses, e podia gastar aquele dinheiro só comigo. Eu já vinha imaginando viver aquilo desde novembro, quando percebi que a cada x stories que via no Instagram, recebia um anúncio de venda de ingressos, que ainda estavam disponíveis para o show de Goiânia. Perceber que eu podia fazer aquilo foi transformador.
Com o dinheiro rendendo numa caixinha de banco digital, comecei a me preparar. Tive que mudar o plano, deixando de ir ao show de Goiânia para ir ao de Brasília, pois o primeiro aconteceria na noite anterior à aplicação da prova do Concurso Público Nacional Unificado - posteriormente, adiada por causa das enchentes que afetaram o Rio Grande do Sul. Foi melhor mudar, paguei um ingresso mais barato. Comprei uma passagem de ônibus em promoção, uma camiseta estampada na Shopee e deixei o resto do dinheiro para o meu consumo durante aquela noite.
E o que aconteceu ali, comigo, foi mágico.
Foi no ano de 2018 que ouvi pela primeira vez a música Vou morrer sozinho, e depois dela, todo o álbum Lobos, o primeiro de Jão. A melancolia daquelas canções me acompanhou na solidão do meu ano seguinte, e o próximo álbum dele, o Anti-herói, seguia a mesma linha. O terceiro, em 2021, tinha um tom diferente. As músicas eram mais adultas, falavam de desejos e aventuras que eu também ansiava por ter. Uma delas, em especial, falava pela primeira vez da sexualidade do cantor, e a fala explícita sobre amar meninos e meninas me lembrava da minha própria euforia de me descobrir bissexual. Era pra mim aquela música, era pra mim aquele álbum.
Me lembro de quantas vezes, durante o ano seguinte, eu desci na minha bicicleta as ruas que me levavam ao meu trabalho terrível gritando mentalmente os versos de Clarão, Santo, Acontece, Coringa, Tempos de Glória e Doce. Trabalhando naquela empresa cheia de bolsonaristas e fundamentalistas religiosos e tendo me colocado de volta no armário, eu voltava a me sentir eu mesma quando gritava Meninos e Meninas, e os vídeos de shows da Turnê Pirata, em 2022, me enchiam de esperança e orgulho quando justamente nessa música o público agitava bandeirinhas nas cores rosa, roxo e azul.
Eu queria voltar a sentir aquilo. Só não sabia o quanto precisava.
Estar em um ginásio lotado e cantar junto com inúmeras pessoas aquelas músicas que me acompanharam por tanto tempo foi uma experiência muito mais forte, emocionante e poderosa do que eu esperava, e desde então eu venho pensando no que esse tipo de coisa faz com a gente. Na energia que toma conta de quem se vê cercado de pessoas compartilhando os mesmos sentimentos expressos numa música. De como a música, em si, transporta a gente pra uma outra esfera da existência, em que coisas que a gente nem queria admitir que sentia são colocadas pra fora e a gente só percebe quando já está lá, sentindo pra caralho e se acabando de chorar.
A noite da Rainha
Uma semana depois de eu ter tido uma crise de choro com uma música sobre alguém que é deixado para trás², Madonna fazia seu histórico show na praia de Copacabana com direito a participações especiais, homenagens a personalidades artísticas, históricas e políticas, lembrança daqueles que se foram em decorrência da pandemia de HIV nos anos 80 e 90, e a típica ousadia dela para falar de sexo e criticar a hipocrisia das instituições religiosas.
Não, eu não estava lá. Eu precisaria receber muito dinheiro extra para poder pagar por uma passagem de avião e hospedagem no Rio de Janeiro de última hora.
Mas, como muita gente que acompanho online, eu estava sentada no meu sofá desde antes das 21h, com o Globoplay sintonizado para não perder nenhum momento da apresentação da Rainha do Pop que nunca mais se repetiria.
Madonna foi uma artista que eu já conhecia desde que me lembro, mas cuja importância só fui entender depois de adulta.
Quando eu era criança e meu irmão mais velho assistia toda noite ao TVZ do Multishow, os clipes de Hung Up e Sorry continuavam na minha cabeça depois que acabavam, e se um grupo de mulheres puxando homens para dentro de uma van onde dançam de forma sensual me parecia uma coisa “ousada”, eu nem imaginava de que outras formas Madonna já tinha ousado em videoclipes 20 anos antes.
Desde que eu me lembro, as pessoas já a criticavam por “se comportar como se não fosse uma velha”, por estar em evidência na mídia, por namorar um homem muito mais jovem chamado Jesus. Mas eu não fazia ideia do quanto ela já havia incomodado pessoas mundo afora, politicamente falando, por abordar em suas músicas temas como a liberdade sexual feminina, por defender minorias e apoiar pessoas LGBT quando o mundo desejava que estas morressem…
Só o que eu sabia era que Madonna era uma das poucas cantoras americanas de quem meu pai gostava por “não cantar gritando”, e apenas quando ouvi um episódio de podcast que contava parte da história de sua carreira é que entendi o quanto ela tinha sido e ainda é importante, especialmente para pessoas como eu. Ver o clipe de Like a Prayer e um vídeo da performance de Vogue no MTV Awards depois disso foi… transformador.
Por isso é que eu estava na frente da TV ao invés de estar na minha cama com um livro no colo naquela noite, e os depoimentos de fãs emocionados que vi transmitidos antes do início do show ou publicados em redes sociais durante e depois me ajudaram a dar sentido para o que vivi com aquela performance.
Acho que a música tem um poder de nos fazer sentir e nos despertar para aquilo que sequer sabíamos que sentíamos, e de nos mover e conectar com pessoas que vibram na mesma frequência. Só quem já sentiu sabe.
E, ainda que você não tenha sentido isso com os artistas de quem falei aqui, eu sei que você sabe mesmo assim.
Gostou de saber da minha experiência? Que tal deixar um comentário lá em baixo?
As últimas
No início de maio, declarei encerrada a correção do roteiro do meu Haters to lovers universitário. Mas, a bem da verdade, não fiquei satisfeita. Acrescentei os dois capítulos que julgava necessários antes do clímax e modifiquei muita coisa dentro daquilo que já estava previsto, mas não me senti pronta para voltar a escrever de imediato. Acredito que é uma coisa normal depois de dar uma pausa, mas ainda acho que falta alguma coisa.
Na busca de tentar entender que coisa era essa, me dei conta de que não havia consequências. Minhas duas personagens percebem o que tinham em comum e assumem os sentimentos que têm uma pela outra; minha narradora tem seu trabalho premiado (em dinheiro) no evento acadêmico; mas a antagonista da história aceita passivamente o combate à sabotagem que vinha tentando fazer nas apresentações de alunos visitantes, como se não estivesse determinada a prejudicar seus concorrentes um a um até ser uma das premiadas.
Um obstáculo tão fácil de combater, em uma história, não é um obstáculo real. E uma história em que tudo facilita a realização dos objetivos do protagonista não é uma história bem contada.
Há alguns dias eu me pergunto se essa era mesmo uma ideia tão boa quanto parecia anos atrás, quando pensei em transformar uma rixa de cursos numa comédia romântica. Eu me pergunto se precisava mesmo contar essa história, tendo tantas outras ideias, ou se só estou tentando seguir uma programação que impus pra mim mesma no início do ano. Se não seria melhor só aceitar que essa não deu certo e seguir em frente, escolher outros personagens e outra ideia para escrever. Não sei o que fazer agora. E não sei como encontrar uma resposta.
Li, ouvi e assisti
Eu não vou listar tudo o que consumi durante o mês, então, deixo aqui as minhas leituras mais recentes e algumas recomendações de conteúdo.
Na tentativa de reduzir a minha pilha de livros comprados há anos e ainda não lidos, e ao mesmo tempo querendo fazer uma leitura rápida e fácil, comecei a ler o que o sol faz com as flores, segundo livro de rupi kaur publicado no Brasil. Em 2017, quando os poemas dela estavam em todo lugar no Facebook e no Instagram, eu amei outros jeitos de usar a boca. Mas levei dois anos para conseguir comprar o livro seguinte e mais 5 anos para abri-lo. Não foi nem de perto uma experiência parecida, alguns dos poemas me deixaram envergonhada e já estou querendo colocar os dois livros numa caixa de com outros exemplares que vou doar esta semana.
Independente do que você acha ou não de rupi kaur e de outros autores de poesia com estilo semelhante ao dela, eu recomendo ouvir o episódio Minha obra, minhas regras, do podcast Rádio Novelo Apresenta, e assistir ao vídeo O que está acontecendo com a poesia, do canal Ficçomos. O primeiro conta a história de alguém que achava esse tipo de literatura “inferior” e tentou fazer uma piada com isso, mas acabou se arrependendo; já o segundo, analisa os motivos de a “poesia de Instagram” ser algo tão popular.
O que eu acho disso tudo? Assim como a Wlange, do canal Ficçomos, eu também chorei com poemas de outros jeitos…, e assim como ela quando releu o livro anos depois, eu achei vários dos poemas de o que o sol faz com as flores óbvios e sem sentido.
Também terminei de ler essa semana Cisne Ferido e Histórias quentinhas sobre existir. O primeiro faz parte da coleção Femme Fatale, com contos e novelas de escritoras brasileiras que adaptam contos de fadas de forma moderna. O segundo é uma antologia de quadrinhos com histórias fofas protagonizadas por pessoas LGBTQIAP+.
Depois de passar semanas ouvindo a setlist da Superturnê, eu também passei semanas ouvindo a setlist da Celebration Tuor. Pra quem também ficou madonnizado, recomendo o episódio Esqueletos com Madonna, do podcast Esqueletos no Armário, que comenta vários dos filmes da carreira da rainha.
Entre os filmes que vi, Challengers foi uma delícia e me deixou ciente de que eu também deixaria a Zendaya me manipular. Consegui assistir a O ano em que meus pais saíram de férias pela primeira vez desde a minha infância, quando meu pai alugou esse filme na locadora para a família inteira ver e eu fiquei sem entender nada. Desde então, eu queria voltar pra essa história. O longa acompanha o olhar de uma criança cujos pais tentam fugir da perseguição durante a ditadura militar brasileira, e é uma história bonita e triste ao mesmo tempo.
Também revi Samsara (2011), um documentário sem narração ou depoimentos, que constrói por meio de imagens de paisagens, fenômenos da natureza, animais, cidades, trabalhadores em atividade ou pessoas em manifestações culturais e religiosas, uma espécie de narrativa sobre a vida humana no planeta Terra e o ciclo de continuidade da vida. Assisti a esse filme durante uma aula no meu primeiro período na universidade, e como ele foi o primeiro filme “diferentão” que assisti, eu sempre quis poder ver de novo.
Assisti a todos esses filmes pelos “métodos alternativos”, se vocês me entendem.
Espero que tenham gostado do retorno da news! Eu sei que poderia ter publicado esse texto na semana seguinte ao show da Madonna e provavelmente teria um retorno muito maior com ele quando o assunto ainda estava em alta, mas realmente não tive condições emocionais pra isso. O hiato de um mês não foi intencional e eu não pretendo repeti-lo.
Por hoje, é só.
Um abraço,
Lethycia Dias
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¹Na música Lobos, do álbum homônimo, Jão refere-se a si mesmo como um “menino do interior”.
²A referência diz respeito à música Julho, do álbum Super.
Esta edição fez parte do Newsletteraço 2024, uma iniciativa de pessoas que escrevem newsletters para publicar edições novas ou primeiras edições de suas news no mesmo dia. Confira a lista dos participantes de conheça suas publicações:
1. Kali de los Santos -
2. Rafaela A. Quevedo -
3. Fernando Alves / Futebol no Fim do Mundo -
4. Mia Sodré - Querido Clássico -
5. Victória - resenhas que ninguém pediu
6. Thainá - Sentimentalizar
7. João Aguiar - Mil Palavras -
8. Stéfane Goulart - Depois que tocar https://depoisquetocar.substack.com/subscribe 9. Gabriel Barros - Quinze por dia
10. Danilo Heitor - Antes do fim
11. Sofia Osório de Castro - Caderneta
12. Ana Carolina Dantas - Crônicas do Bloco de Notas
https://ana-cronicas-txt.beehiiv.com/
13. Carol Vidal - Devaneios Criativos
14. Fernanda Chazan - Escrevendo no Escuro
15. Lethycia Dias - Uma mulher que escreve -
16. Angelo Dias - Cronofobia -
17. Natasha Guerrero Moreno - Regougando -
18. Rafael Juck - Desmanche Fantástico -
19. Cristiane Helena Corrêa - Armário de Aromas -
20. Geo Amaral - Georama -
21. Karine Canal - Kverso -
22. Luciana Florenzano - Disso eu sempre me lembro
23. Saskia Sá - Cartas Náufragas
24. Rodrigo vK
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