O que fazer com cacos de vidro - Uma mulher que escreve #96
O dia em que eu estava indo ao trabalho e sofri um acidente de trânsito, ou: encontrei cacos de vidro na minha roupa
Olá, pessoas que leem!
Pensei em não escrever sobre isso. Pensei também em escrever só pra mim. Mas acho que o que aconteceu ecoa de um jeito que talvez, só colocando pra fora, eu possa entender melhor - essa não é a primeira vez que eu conto essa história, mas as vezes anteriores ainda não foram o suficiente.
O relato a seguir contém descrições de lesões corporais e sangue.
Deve ter havido um momento de suspensão. Um momento em que tudo parou, ou eu que parei, em que não foi possível ver ou ouvir nada. Talvez eu só tenha fechado os olhos. Talvez eu só não me lembre. Talvez tenha durado um segundo. Não sei. Quando dei por mim, estava coberta de poeira. Minha bolsa recém-comprada para usar nas idas ao trabalho novo, linda, estilosa, estava toda amarronzada. Minhas mãos pretas. No assoalho do ônibus, uma mulher chorava caída sobre um monte de cacos de vidro pequenininhos. Tudo em que consegui pensar foi que eu precisava sair dali o mais rápido possível.
Outras coisas também passavam pela minha cabeça. Eu estava atrasada. Precisava pegar outro ônibus, depressa. Não dava pra chegar muito atrasada na primeira semana no trabalho novo. Minha cabeça estava doendo, eu tinha sentido alguma coisa atrás de mim, nas minhas costas, mas se conseguia andar, estava tudo bem, não estava?
Morar perto de uma rodovia estadual em perímetro urbano te deixa meio indiferente a certas coisas. Meio enérgica demais para outras. Não posso contar por quantos acidentes já passei, mas me lembro bem do primeiro. Eu ia para o cursinho pré-ENEM, dez anos atrás. Vi a mulher caída da moto que entrou sob um caminhão. Vi o sangue no asfalto. Não quis esticar o pescoço como as outras pessoas para ver mais.
Quase todos os dias, alguma coisa assim acontece nessa rodovia que é o meu caminho para tudo. São poucas as linhas de ônibus que não a atravessam, que cortam por dentro dos bairros em direção ao centro da cidade. Carros, motos, caminhões, ônibus… Às vezes se chocam contra o meio-fio, ou um poste, ou outro veículo. Às vezes alguém morre, às vezes as pessoas têm sorte.
Eu tive sorte.
O motorista do ônibus que vinha atrás, um Eixo Anhanguera, não me deixou entrar porque viu o sangue no meu ombro. Eu tinha que esperar o socorro, poderia dar problema pra ele, ele disse. Eu ainda não tinha percebido que estava sangrando. De repente, me dava conta do meu ombro vermelho e do pequeno fio que escorria do meu pulso esquerdo.
Voltei em direção à parada onde os outros passageiros, feridos e não feridos, se reuniam. Com ajuda de mais duas pessoas, a mulher caída de quem eu me desviei para descer se sentava no bloco de concreto que prendia o abrigo azul ao chão. Ela parecia sentir muita dor. Sentada no banco metálico, outra tinha vários filetes de sangue escorrendo pelo braço. Uma outra tinha menos cortes do que ela e mais do que eu. Uma senhora me ofereceu um pedaço de papel para limpar o sangue. Depois de usá-lo, eu o guardei no bolso da calça, de onde só o tiraria duas horas depois, para jogar fora na lixeira de num consultório médico.
Guardei dentro da bolsa o livro que estava lendo antes da batida. Por causa dele, eu não vi nada do que aconteceu, não compreendi nada além do barulho e dos gritos. E do momento em que tudo parou. Ele havia sido arremessado das minhas mãos, do último banco do corredor, ao lado direito, em direção ao assoalho entre os bancos altos e os degraus da porta traseira. Eu o havia recolhido ali antes de tentar entrar no Eixo-Anhanguera, todo sujo. Num dos degraus, estava o celular da mulher que havia se sentado à minha frente.
Me sentei ali no banco da parada, resignada a ter que esperar. Ouvia conversas aqui e ali, e pouco a pouco entendia o que havia acontecido. Um caminhão havia batido na traseira do ônibus, atingindo o lado esquerdo. Seu motorista havia sido fechado por um carro, e ao evitar atingi-lo, acabou por nos atingir. A lateral do ônibus foi aberta por esse lado. O último banco do lado esquerdo foi amassado contra o banco da frente. Felizmente estava vazio. A mulher mais machucada do que eu e menos machucada do que a outra mulher contava, impressionada, que estava sentada ali, mas havia trocado de lugar para evitar o sol forte do período de estiagem.
Milagre. Sorte. Eu não sei qual o nome para isso.
Os passageiros que saíram ilesos terminavam de se arranjar, entrando em outros ônibus ou em carros de aplicativo. O motorista do coletivo nos pedia nossos telefones - para que a empresa entrasse em contato conosco, ele explicava. Dei o meu sem acreditar que isso aconteceria. Três horas depois, eu receberia uma ligação, não da empresa de transporte público, mas da Polícia Militar, para o registro do Boletim de Ocorrência.
Fui levada numa ambulância até uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA) próxima a Aparecida de Goiânia, no extremo Sul de Goiânia, a única com ortopedista disponível. Eu havia saído da região Oeste e não reconhecia nada do que via no caminho. A médica sentia dó, porque eu parecia estar toda arrumada antes do acidente. Só quando tive a oportunidade de lavar o rosto e os braços com água e sabão foi que percebi o quanto estava suja da fumaça do escapamento que havia sido quebrado na batida.
Não era grave, não fisicamente. Escoriações, a técnica do SAMU disse à médica. Mas parecia estar piorando, porque meu ombro havia começado a doer durante a espera, e minhas costas também, no caminho. O local machucado no meu pulso estava visivelmente alto. Medicamento na veia. Raios-X.
Almocei a comida fria que eu levava na marmita para o trabalho, porque não sabia quanto tempo ficaria ali, e porque se não comesse, o almoço estragaria. Aprendi com meus pais a ter horror a jogar comida fora. Não sei se era a fome, mas estava gostoso. Em algum momento senti a sandália de plataforma apertar os meus pés, e depois de ficar satisfeita, desatei as fivelas fiquei descalça, prendendo as tiras de plástico nas alças da bolsa.
Aonde eu ia, na unidade de saúde, as pessoas me olhavam. A calça manchada, a aparência desmantelada, o cabelo duro de poeira. Eu tentava não sujar o pedido dos Raios-X e nem o pedido do remédio com as minhas mãos pretas. Fiquei tonta após a injeção. Teria desmaiado se não tivessem me ajudado a me deitar no chão, as pernas apoiadas numa maca, até a sensação ruim passar.
A sala de radiografias era gelada. Nada estava quebrado. Só colocar gelo, disse o ortopedista. Comparecimento, só? Não quer pro dia inteiro? Se o senhor puder me dar um atestado pro dia, eu agradeço.
Um Uber me levou até em casa. O motorista não fez perguntas, e eu não sabia se gostaria de responder. Nunca gostei do quanto as pessoas ficam impressionadas com histórias de acidentes, ferimentos, mortes. Passei boa parte da tarde deitada, esperando a dor passar com a ajudar do medicamento sublingual e de cubos de gelo sobre o pulso.
À noite, quando peguei meu livro de volta para continuar a leitura - interrompida desde aquele instante em que tudo parou de fazer sentido - estranhei o volume entre as páginas. Ao abri-las, encontrei três pequeninos cacos de vidro.
No sábado, quando lavei minha roupa daquele dia - após quase dois dias de molho -, encontrei mais três caquinhos. No domingo do final de semana seguinte, ao limpar minha bolsa pela segunda vez, mais quatro.
De uma janela partida em inúmeros pedacinhos, numa manhã de quinta-feira. Apenas mais um acidente de trânsito na GO-060, sentido Goiânia. Sem mortos, mas com traumas.
Agora, a cada vez que entro num ônibus, eu me pergunto onde é menos perigoso sentar.
Li, ouvi e assisti
Da última edição até aqui, terminei de ler Deixe o sol entrar e Última Parada. Também li por inteiro Um traço até você, de Olívia Pilar, um romance contemporâneo entre uma desenhista e uma poeta que trata de temas como identidade, autoestima e aprender a reconhecer a força da própria arte.
No momento, estou relendo Coraline, 14 anos após a primeira leitura; e lendo Viralizou, de Juan Jullian e Igor Verde, e Sangue sobre tela, de Fernanda Redfield. O primeiro é a história já muito conhecida que deu origem ao filme de 2009; o segundo, é uma comédia ambientada durante um apocalipse zumbi no Rio de Janeiro; e o último, é uma mistura de romance de época e romance paranormal com protagonismo sáfico. Coincidentemente, também envolve mulheres artistas, e acho que estou chegando na parte paranormal.
No Spotify, estou há quase duas semanas ouvindo a Classical Soul, que tem mais de 400 músicas instrumentais, e me ajuda muito a estudar.
Entre os podcasts que andei ouvindo, recomendo muito o episódio Gaza no coração, o número 121 do 451 MHz, em que os escritores Benjamin Moser e Milton Hatoum falam dos ataques terríveis de Israel na Palestina e no Líbano.
Pelo Globoplay, assisti ao drama sensacional O Rio do Desejo, um drama ambientado na região Norte do Brasil em que uma mulher se envolve com o irmão do marido enquanto ele faz uma viagem. É adaptado de um conto de Milton Hatoum, e dá pra sentir a tensão se formando no ar que nem chuva forte.
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Por hoje é só.
Um abraço,
Lethycia Dias
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