Permissão para tristeza concedida - Uma mulher que escreve #99
Você pode e vai se sentir triste mesmo se tiver realizado sonhos e feito coisas legais durante o ano. E está tudo bem com isso.
Olá, pessoas que leem!
A edição de hoje de Uma mulher que escreve é especial, pois está sendo escrita para um destinatário específico. Você que me acompanha ou que chegou aqui por acaso, não se preocupe! Eu garanto que vai ser legal.
Todos os anos, o grupo de autores de newsletter do qual eu participo realiza uma espécie de “amigo secreto” em que cada participante publica uma news para alguém e recebe em troca uma cartinha escrita para si. A brincadeira aumenta o senso de comunidade que criamos entre nós e é uma forma bacana de conhecer novas news, já que a melhor forma de pensar no que escrever para alguém é lendo o que essa pessoa escreve.
No fim da edição você descobrirá quem foi minha amiga secreta, e de quebra ainda pode ler os textos dela!
Gostou da ideia? Então pegue sua água e seu café e vamos à edição de hoje, que será também a última de 2024 - falarei um pouco mais disso no final.
Querida amiga,
Eu soube imediatamente do que falar com você quando li seu texto sobre a diferença entre otimismo e esperança. Nunca gostei das pessoas excessivamente otimistas, que tentam se convencer de que tudo correrá bem independente do que aconteça. Você tenta prevenir sobre um risco que a pessoa corre, e ela já começa a bater na madeira, te manda parar de agourar, ou, o que eu acho ainda mais idiota, “profetizar”.
Pior ainda são as pessoas que acham que tudo aquilo que queremos depende de acreditarmos, e aí, confundem um fato objetivo com uma crença. Você está contando, sei lá, que não consegue um emprego melhor porque o mercado de trabalho anda difícil - e você realmente fez várias tentativas que não deram certo - e a pessoa já rebate “Mas também, com essa negatividade toda, aí é que você não vai conseguir mesmo!”.
Pior ainda, pra mim, são as Pollyannas: pessoas que acham que você precisa ver um lado bom em tudo e que não pode reclamar do que está ruim. Não conseguiu aquele aumento? Pelo menos você ainda tem emprego! Isso facilmente descamba para a Olimpíada de Sofrimento: a pessoa sempre tem uma história pra contar sobre alguém que está morrendo de câncer num hospital, e ainda assim, acorda sorrindo todos os dias. O que é uma forma bem babaca de dizer “Suas preocupações e angústias não valem nada e eu não estava aqui pra realmente te ouvir”.
Gostei do que você falou sobre como Byung-Chul Han diferencia a esperança e o otimismo, quando diz que:
Para ele, o otimismo é uma expectativa positiva sobre o futuro, enquanto a esperança é uma força mais resiliente e transformadora, que nos impulsiona a agir e a enfrentar as incertezas, ao invés de acreditar que tudo se resolverá por si só […] No contexto neoliberal, o otimismo é basicamente uma forma de conformismo que mantém a roda do capitalismo girando. Acreditamos que sucesso ou fracasso depende apenas de nós. Para Han, a "sociedade do cansaço" surge dessa positividade excessiva, forçando as pessoas a se tornarem "empreendedores de si mesmas" e a ignorarem a importância do descanso e dos fracassos.
E acho que nada pode estar mais de acordo com esse otimismo neoliberal e com uma positividade tóxica do que a trend que tomou conta do Instagram nos últimos dias, em que as pessoas se perguntam como podem “ser tristes” este ano se… e listam suas conquistas pessoais e profissionais mais recentes.
Imagino que quem começou só queria comemorar a parte boa de 2024, mas a repetição de tantos posts com o mesmo questionamento induz à ideia de que nossas emoções podem ser uma coisa estática - afinal, a trend fala em ser e não em estar triste - e também faz pensar que, se a pessoa realizou um grande sonho, se casou, fez uma viagem muito esperada ou ganhou muito dinheiro, então não pode se sentir triste.
Pelo que li na sua newsletter, amiga, vi que seu ano teve altos e baixos, com momentos de desesperança e estresse, mas também de felicidade e profunda conexão humana. E acho que a vida de todo mundo é meio assim.
Este ano eu realizei três grandes objetivos, mas não significa que não me senti mal em nenhum momento; que não fiquei angustiada, que não tive medo de falhar comigo mesma após me permitir acreditar que merecia e podia ter essas três coisas.
Em abril, fui pela primeira vez a um show em um estádio. Antes disso, tinha ido apenas a shows pequenos e intimistas, sem grandes riscos envolvidos. Dessa vez, foi o show de um artista que eu amo, cujas músicas embalaram diferentes momentos da minha vida nos últimos seis anos, e que viria pela primeira vez para Goiânia. Mas antes de sequer comprar o ingresso, precisei de meses de terapia para me convencer de que merecia uma noite de diversão, e ainda tive que encarar o meu próprio medo de não conseguir me divertir indo sozinha.
Esse post no Instagram mostra que eu não deixei de me divertir nem por um segundo.
De agosto para setembro, meu nome apareceu no Diário Oficial da União e eu me desliguei da prefeitura da cidade vizinha onde era explorada e mal-paga para passar a trabalhar em um órgão público federal, com um salário bem maior e benefícios legais, que me deixou mais perto de realizar outros sonhos. Mas num dos piores dias no meu emprego anterior, chorei até soluçar trancada no banheiro porque, depois de anos fazendo provas de concurso público, parecia que eu ficaria estacionada para sempre em um cargo medíocre com salário que mal dava pra pagar as contas, sendo pressionada para trabalhar ainda mais e me sentindo vigiada o tempo todo num ambiente em que controlar as pessoas era bem mais importante do que deixá-las produzirem.
Num outro dia ruim, cheguei a me perguntar se não deveria fazer uma promessa para que a convocação que eu tanto esperava chegasse logo. Não sou nem um pouco religiosa, mas a cidade onde eu trabalhava, é, e o desespero quase me fez entrar no clima da romaria que acontece por lá todos os anos.
Minha convocação veio sem promessa nenhuma da minha parte, mas houve muita ansiedade e angústia envolvida.
Eu também troquei o meu celular ultrapassado com memória viciada e mais de quatro anos de uso por um novinho, bem mais bonito e moderno, pago à vista, e para isso, precisei de meses de muita paciência e organização financeira, e também de mais um pouquinho de terapia para entender que não era egoísta querer gastar bastante dinheiro só comigo.
Em janeiro, comecei a escrever uma história cuja ideia estava na minha cabeça fazia anos… Mas entrei num hiato em agosto e ainda não consegui voltar a escrever.
Eu também inscrevi meu primeiro romance ainda não publicado em dois concursos literários com premiação que envolvia dinheiro e publicação tradicional, mas não fui premiada em nenhum deles.
E passei meses estudando para o Concurso Público Nacional Unificado, o CPNU, no qual concorri a sete diferentes cargos da área de Comunicação, mas consegui ser eliminada por nervosismo e má gestão de tempo, que me levaram a não conseguir escrever o número mínimo de linhas na prova discursiva.
E depois de me maltratar e chorar muito ao perceber o que tinha feito, eu me dei conta de que na verdade não quero mais trabalhar com Comunicação, embora tenha começado a fazer concursos públicos porque parecia a única forma de exercer minha profissão sem ter alguém para me indicar para uma vaga de emprego. A necessidade de pagar as contas me levou a tentar também cargos administrativos, que normalmente são de nível médio, e eu percebi que me contentava com um cargo desse tipo, com preencher planilhas e assinar papéis, desde que o salário fosse bom e que o dia-a-dia não destruísse minha saúde mental. E ficou tudo bem. Não parecia mais o fim do mundo eu ter perdido a chance de me tornar assessora de imprensa no IBGE, na FUNAI ou na AGU.
Não sei se dei informação demais sobre a minha vida ou se apenas citei os acontecimentos sem dar muito contexto, mas com isso, eu quis dizer que as coisas não são lineares, que não existe uma escala, ou melhor, uma “escada” de desenvolvimento que vamos subindo degrau por degrau até chegar no topo que pode ser representado por qualquer coisa que a gente queira. O emprego dos sonhos, o negócio lucrativo, o casamento com o amor da nossa vida, o cruzeiro intercontinental.
Acho que ninguém planeja a própria vida inteira num passo a passo, a gente só vai seguindo atrás daquilo que a gente quer ou precisa, e às vezes vai descobrindo que prefere seguir outro caminho, então pega um desvio; ou encontra uma paisagem bonita e fica ali por um tempo pra depois voltar a seguir. E quem planeja tudo, bem, eu acho que dificilmente consegue dar check em todos os itens. Será que tem ser na ordem?
Eu não sei se você usa o Instagram, amiga, e nem o que achou da trend de “ser triste”. Não tem problema se você tiver feito um post desses; eu não condeno quem fez, porque acho que a intenção realmente é boa. Mas uma coisa que aprendi nos últimos tempos é que toda emoção é válida, e que tentar evitar sentir uma emoção qualquer só porque aprendemos quando éramos crianças que ela é “feia” ou “ruim”, ou fingir que não estamos sentindo, só atrapalha a gente a se entender e se conhecer.
A meu ver, dizer pra si mesmo que não se pode ficar triste só porque se realizou coisas legais e desejadas é apenas uma forma de tornar a tristeza ainda pior na próxima vez que ela vier. Porque, afinal, a própria pessoa se convenceu de que não deveria se sentir assim! Melhor do que reprimir é tentar entender de onde vem e quais efeitos causa.
Por fim, querida amiga, eu espero que o seu ano tenha sido legal. Que você tenha sentido ainda mais emoções intensas com música ao vivo ou gravada, com um filme ou um livro ou qualquer tipo de arte. Que caminhar pela floresta continue te fazendo bem. Que o outono, sendo sua estação favorita, tenha te trazido alegria. Que você tenha realizado um sonho ou objetivo, ou se não realizou, que tenha ao menos tentado.
Um abraço,
Lethycia Dias
Este texto é dirigido a Lalai Person, da newsletter Espiral, e foi escrito a partir da edição de número 120, que você pode ler clicando abaixo:
Um aviso
Todo fim de ano eu me dou um pequeno recesso na news. Por eu ter ficado um mês sem conseguir escrever aqui, vocês já devem imaginar o quanto esse recesso tem sido necessário pra mim.
Esta será a última news de 2024. Terei um descanso de 4 quartas-feiras, o equivalente ao envio de duas edições novas. A gente volta a se ler no dia 15 de janeiro, com a centésima edição de Uma mulher que escreve!
Até lá, você pode reler suas edições favoritas, ou ler pela primeira vez, caso esteja me conhecendo nesta edição. Deixo aqui o link do arquivo para meus textos anteriores.
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Li, ouvi e assisti
Minhas leituras do momento são As doze tribos de Hattie, de Ayana Mathis, A paixão segundo G. H., de Clarice Lispector, e Se ela fosse minha, de Alison Cochrun. O primeiro acompanha uma família negra americana ao longo do tempo no século passado, cada capítulo acompanhando um dos doze filhos de uma mulher chamada Hattie. O último é um romance sáfico natalino com uma protagonista bi e demi, cheia de ansiedade e inseguranças que a autora parece ter criado depois de um tempo lendo meu diário.
A paixão é o infame livro sobre a mulher que entra pela primeira vez no quartinho de empregada de seu apartamento, tem uma epifania e come uma barata. É muito mais do que isso, na verdade, e as reflexões que ela faz são instigantes e muito profundas. Mas o problema está ali, na barata. A cena ainda não aconteceu, por enquanto a dondoca só matou a bicha e fica ali olhando pra ela entre um capítulo e outro, pensando se a barata sente ou pensa alguma coisa. Mas isso já é o suficiente para que G. H. concorra ao título de coisa mais nojenta que eu já li. Eu realmente não queria ficar imaginando a gosma branca que sai do cadáver da barata a cada vez que a mulher olha pra ela.
Estou há um tempão ouvindo a playlist my very jazzy heart, com mais de 700 músicas de artistas como Ella Ftizgerald, Frank Sinatra, Louis Armstrong e outros. Eu tinha certeza de que entraria para o top 1% de ouvinte deles na Retrospectiva do Spotify, mas não rolou!
Assim como muita gente na minha bolha virtual, eu corri para ouvir o podcast De Saída para saber por que Jout Jout sumiu da internet. Eu não diria que fiquei encantada com a forma que ela está vivendo agora. Mas estou interessada no que ela vem falando sobre o quanto uma presença online marcante exige da gente, e do que muda ao se sair da internet.
No feriado de 15 de novembro, assisti ao incrível Ainda estou aqui, e eu sei que você já deve ter lido isso mais de uma vez, mas sim, é “tudo isso” que estão falando mesmo! Fiquei emocionada como o filme nos faz conhecer e gostar da família Paiva, como se nós fizéssemos parte do dia-a-dia deles, e depois nos faz sofrer com a ausência e a falta de informação. Eu comecei a chorar depois do icônico momento da família sorrindo para a foto da revista, e continuei chorando sem parar até os créditos. Se você ainda não viu, faça um favor a si mesmo e veja!
É claro que eu vi muitos outros filmes além desse. Aliás, atingi a marca de 1000 filmes assistidos no Filmow e ganhei um selinho por causa disso. Sou ou não sou cinéfila? Mas vou deixar esse espacinho aqui só pra Ainda estou aqui. O filme e a Fernanda Torres merecem todas as premiações possíveis, e eu estou amando a torcida por ambos!
Por hoje é só.
Um abraço,
Lethycia Dias
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Lethycia, amei demais o meu presente. Sua carta veio num momento mágico da minha vida, pois estou realizando um sonho: viajar pela Índia e fazer um retiro de meditação e yoga. A maior sincronia foi que estava há pouco conversando com uma amiga sobre os aprendizados que o retiro me trouxe. Falei sobre esse texto do otimismo x esperança porque ele se conecta com alguns insights que tive nesses dias. Comentei sobre o amigo secreto e decidi abrir o telegram pra ver se alguém já tinha escrito para mim. O seu foi o primeiro link que cliquei. A surpresa foi enorme ao ver justamente esse texto como ponto de partida para sua edição. 💙
Deletei o Instagram no meio dessa viagem e detesto esse tipo de post que você menciona, portanto não fiz (e nem vi) a trend sobre ser triste.
Do lado de cá, eu desejo que você seja mais feliz nesse momento da sua vida, que se dê mais presentes do que acha merecer, assim como assista muitos shows ao vivo. Música é o que me move nesse mundo e um dos lugares que mais me sinto feliz é em um show.
Muito amor, esperança e momentos de alegria e felicidade. To aqui com um sorrisão no rosto após ler seu texto. Obrigada por esse presente. ❤️
Muito legal o que você falou sobre a dualidade dos nossos sentimentos por que a vida é sobre isso né? Alegria e tristeza fazem parte da nossa rotina diariamente e tá tudo bem ficar feliz pelo que foi bom, mas ainda assim sentir tristeza pelo que não foi. E o verbo faz toda diferença né... não dá pra ser triste o tempo todo, mas "ser feliz" é um conceito no qual eu não acredito também, porque não são sentimentos permanentes e ainda bem que não são! Pensa em como seria chata a vida assim?
Enfim... feliz pelo seu ano e pelas suas conquistas. Muito bonita a sua escrita.
Um beijo!