Aquele abraço - Uma mulher que escreve #75
Uma crônica sobre voltar a visitar um lugar querido e sobre como a arte sempre vale a pena para quem tem amor por ela.
Num fim de tarde de agosto, saio com minha mãe para nos divertirmos. Verdadeira quebra de rotina, coisa rara para quem sente nas costas o peso da responsabilidade. Meus óculos escuros deixam de ser necessários em muito pouco tempo, porque o sol logo se põe. Três ônibus seguidos nos levam até o campus da universidade em que estudei, num trajeto que, de 2015 a 2018, eu fazia diariamente de manhã cedo. É estranho ver o mundo escurecendo ao invés de clareando pelas janelas dos coletivos.
Chegar ao nosso destino me mostra que tudo permanece meio igual, ao mesmo tempo em que muita coisa é diferente. Um prédio novo nos arredores é uma mudança muito pequena diante de tudo o mais que percebo. O som de uma moto me faz lembrar que seu condutor pode querer cortar caminho pela passagem de pedestres, ao invés de dar a volta pelas ruas, e me posiciono no canto da passarela.
A escada do prédio da Faculdade de Letras ainda tem a mesma cobertura imitando lombadas de livros e o atendente da copiadora ainda é o mesmo homem magrinho e careca com óculos do tempo em que eu passava ali de manhã para imprimir meus trabalhos. O balcão de atendimento, porém, mudou: não contém mais a tábua inclinada que formava uma espécie de envelope onde estudantes apoiavam pastas, livros e bolsas enquanto esperavam. Os anúncios de aluguel são novos, mas as paredes estão limpas de rabiscos e dois cartazes coloridos indicam o contato de WhatsApp para envio de arquivos e a nova forma de receber pagamentos por ali, via Pix por QR Code.
Demoro para conseguir enviar meu arquivo. Eu não sabia que havia um número de WhatsApp, nem mesmo um e-mail para isso. Achava que ainda precisaria acessar minha própria conta do Google pelo computador de uso compartilhado, como fazia cinco anos atrás. Não contava que teria de receber a notificação de autorização de acesso no meu celular, dificultada pelo sinal de internet ruim da minha operadora. Não tenho acesso à rede Wi-Fi da universidade desde que me formei, e quando o careca me pergunta se estou conectada a ela, sinto que pareço uma visitante mal-informada aos olhos dele, como me pareciam os alunos da comunidade externa do meu curso de espanhol, que frequentavam as aulas de idiomas sem estar matriculados nos cursos de graduação e pós.
Saio da salinha agradecendo por pagar apenas R$ 8,25 imprimindo papéis que, nas papelarias próximas de casa, me custariam mais de 30 reais. Ao perguntar o preço da página, porém, levo um susto descobrindo que cada uma custou 25 centavos. Eram apenas 15 no meu tempo.
Fico decepcionada quando minha mãe me avisa que a lanchonete mais próxima não tem nenhuma opção de lanche aceitável para nós - apenas os salgados de que não gostamos. Eu esperava encontrar pamonha com facilidade ali, ou pelo menos um sanduíche natural. Talvez tenha me enganado e o cardápido não fosse tão bom quanto pensava.
Passar pelos prédios seguintes, à procura de um lugar para comer, é como percorrer uma galeria de lembranças. Sob aquela árvore, um dia, eu pedi que uma estranha me fotografasse entre um mar de folhas cor-de-rosa. Ali eu almoçava todos os dias por apenas 3 reais que não vinham do meu bolso, subsidiados pela minha bolsa-alimentação para estudantes de baixa renda. Naquele pátio, uma vez, eu sentei em um banco e chorei até soluçar. Naquele canto, uma vendedora ambulante fazia sua banquinha de lanches baratos. Na entrada daquele prédio, eu fotografei um grupo de mulheres que protestavam contra estupros no ambiente acadêmico.
Nos deparamos com uma lanchonete fechada - o quarto local de alimentação por onde passamos essa noite - e mais uma vez me conformo com nosso azar. É quando vejo as barraquinhas e carrinhos de foodtruck no estacionamento do prédio para onde nos dirigimos. Isso definitivamente é novo.
Fico encarando as últimas flores de um grande ipê amarelo com galhos quase completamente nus iluminados por um refletor enquanto comemos pastel de frango e refrigerante, e penso que a repetição que foi minha vida nos últimos anos não me permitiu perceber quanto tempo se passou desde que deixei de frequentar esse lugar. Enviar currículos, fazer entrevistas, estudar para concursos, escrever e publicar meus livros, ir ao Cine Ritz em dias de promoção, começar um novo emprego precarizado e odiar cada minuto até ficar desempregada de novo. Os vinte e poucos anos se passaram e cruzei o limiar dos vinte e tantos, mas não notei. Só a lembrança do Instagram compartilhada ano a ano me faz pareceber que já fazem quase cinco anos que concluí minha graduação.
Eu ainda sigo as redes sociais da Universidade, e foi assim que fiquei sabendo do show que nos trouxe até aqui esta noite. Ainda rio dos memes que a “Mãe UFG” publica online, o ex-Twitter ainda me faz ver tweets de estudantes comentando coisas típicas de suas rotinas. Sim, eu fiquei meio órfã quando me formei. Sinto que as pessoas me acham boba quando percebem isso, mas nada me parece mais natural do que sentir falta do período da minha vida em que fui mais livre.
Validamos nossos ingressos para entrar no prédio e escolhemos um lugar no salão imenso, que vai enchendo de gente conforme o horário se aproxima. Quando as luzes do palco se acendem, sinto a agitação no peito que o contato com arte sempre me trouxe, e me deixo levar pela música. Logo estou gravando vídeos, batendo palmas, movendo a mão direita de um lado para o outro, cantando as músicas que conheço.
Todas as vezes que vejo arte de perto ou interajo com ela, me lembro como esse contato é importante pra mim. Do quanto me faz sorrir, respirar fundo, sentir o coração bater mais forte. E do quanto, para pessoas como eu, é preciso se movimentar para ter esse contato. Estou no mesmo lugar em que assisti aos outros dois únicos shows musicais em que já fui, porque eram os únicos baratos o suficiente para que eu pudesse pagar. Cultura é uma daquelas coisas que você percebe bem quando não querem que você tenha acesso.
Lá pelo meio do espetáculo, eu e minha mãe recuamos para o fundo do salão. Não há lugares marcados nem grades divisórias, então escolhemos duas cadeiras vazias para sentar e descansar as pernas. Aproveito para admirar a empolgação dos outros ao meu redor, quase tão bonita quanto o espetáculo. Pessoas dançam em grupos, duplas ou sozinhas, e admiro de longe. Queria saber dançar samba, gostar de me expor aos olhos de estranhos, não de ter vergonha de me movimentar. Apesar disso, só olhar também tem seu encanto.
O show se aproxima do fim. O artista apresenta clássicos de artistas do gênero, que eu canto sem me importar em errar ou desafinar. As letras familiares são um abraço para quem gosta de música brasileira, algo de que sempre me orgulhei. No fim, vale a pena estar ali com o misto de sentimentos e lembranças que o lugar me traz. Arte sempre vale a pena.
Olá, pessoas que leem!
Hoje resolvi começar a news de um jeito diferente, apresentando o texto principal logo de cara, porque ontem à noite, enquanto assistia a um show de Diogo Nogueira pelo projeto Música no Campus, da Universidade Federal de Goiás, me senti inspirada para escrever essa crônica e achei que ela merecia todo o destaque da edição. O que acharam?
A partir daqui, seguimos com as atualizaçõs e avisos que já são habituais por aqui.
As últimas
Depois de corrigir a playlist do meu romance e definir a música que citaria em cada início de capítulo, voltei a escrever ainda na semana da última edição. Na semana passada, consegui finalizar o quarto capítulo e iniciar o quinto. Como os capítulos alternam entre os pontos de vista de cada protagonista, eu sempre tenho um pouco de dificuldade nesses inícios, por melhor que tenha planejado. Gosto mesmo é do meio dos capítulos e dos pontos mais importantes de cada um deles, que me fazem escrever num fluxo constante por alguns dias. Daqui a pouco volto pra outro desses momentos.
De todas as paradas do mundo, a antologia ambientada na Parada LGBT de São Paulo que escrevi junto com mais seis autoras, completou dois meses de publicação, e para comemorar, distribuímos e-books de presente para três pessoas.
No dia 29 deste mês, Mesmo que eu vá embora completa 4 anos desde que foi publicado. Essa história já encantou inúmeras pessoas, tendo mais de 6 mil unidades do e-book vendidas e mais de 170 mil páginas lidas no Kindle Unlimited. Meu Instagram está cheio de posts comemorativos, e você pode colaborar para um aniversário ainda mais feliz comprando o e-book ou dando de presente para alguém, lendo pelo Kindle Unlimited, fazendo um post a respeito nas suas redes sociais ou, se já tiver lido, postando uma avaliação na Amazon. Já são mais de 1900 avaliações publicadas, e quero muito ver chegar a 2 mil!
Ainda estou com agenda aberta para serviços editoriais de leitura crítica e leitura sensível. A primeira lida com a estrutura narrativa, as cenas, diálogos e desenvolvimento de personagens; e a segunda trabalha temas comuns a personagens que fazem parte de minorias sociais, com intenção de evitar a perpetuação de estereótipos e ideias nocivas. Eu trabalho especificamente com a representação de personagens negros e/ou bissexuais e narrativas com protagonismo feminino. Peça um orçamento pelo e-mail lethyciadiascontato@gmail.com informando o gênero da história e número de laudas de 2100 caracteres com espaço.
Esta semana, do dia 21 ao dia 25 de agosto, está acontecendo o Saldão do Cliente da Amazon. Mais um evento promocional com descontos em vários tipos de produto, e dessa vez começou de forma completamente inesperada, sendo anunciado apenas 72 horas antes de seu início. Alguns preços estão mesmo muito bons, e cheguei a fazer no Twitter uma thread com algumas dicas de e-books e outra de livros físicos em promoção. Ambos os posts foram feitos ontem, mas alguns dos preços ainda se mantém, e vale a pena conferir. Infelizmente, agora o Twitter (eu me recuso a usar o nome novo) não tem mais seus posts visíveis para quem não está logado, então só dá pra acessar as listas tendo uma conta).
Usar meu link afiliado para fazer suas compras sempre me ajuda a continuar pagando as contas e escrevendo. Se você está acessando esta edição pelo seu e-mail, pode clicar no link geral através do meu linktree ou encontrar os links de acesso aos livros que cito ao longo do texto acessando a versão web da news. Caso esteja lendo pelo Substack, no navegador ou no aplicativo, pode clicar sem medo! Cada compra feita através desses links me dá uma pequena comissão sem que você pague nada a mais.
Li, ouvi e assisti
Depois que terminei de ler Mandíbula, voltei a me concentrar na leitura de Noite e dia, da Virginia Woolf, e avancei nesse livro de um jeito que não tinha nem imaginado nos últimos dois meses. Então é isso que acontece quando você se dedica a ler? Brincadeiras à parte, eu amo Virginia Woolf, mas esse romance dela foi muito difícil de levar adiante, e eu pensei várias vezes em abandonar. É uma história de desencontros amorosos envolvendo cinco pessoas. Fiquei tentando montar o quebra-cabeça: Mary amava Ralph, que amava Katharine, que pensava amar William, que descobriu amar Cassandra. Agora, estou perto do fim, e acho que a história vai terminar sem que Katharine e sua mãe terminem de escrever a biografia de seu avô, um poeta famoso.
Continuo lendo Mundo sem fim, e concluí a leitura de Sociologia do negro brasileiro, de Clóvis Moura. Esse último me deu informações importantes para entender melhor algumas circunstâncias na vida pregressa de uma das protagonistas do meu romance, das quais eu já tinha algum conhecimento para entender que fazem parte das vidas de pessoas negras em famílias miscigenadas, mas não tinha suporte teórico o suficiente para saber como exatamente se deram na construção histórico-social desse país. Tudo está bem mais escurecido pra mim agora.
Li também O povo das histórias de assombração, de Yaguarê Yamã e Uziel Guainê, uma coletânea de contos tradicionais do povo indígena Maraguá, com histórias sobre visagens e assombrações e ilustrações lindíssimas. Comecei a ler Lugar de negro, de Lélia González e Carlos Hansenbalg.
Andei ouvindo no Spotify as playlists all star e sofrimento, cheia de músicas pop e R&B dos anos 2000 que sempre me trazem boas lembranças da minha infância; e Cantores negros, cujo nome já diz a que vem. Nessa última, eu não conhecia boa parte das músicas ou mesmo dos artistas, e saí favoritando uma atrás da outra. A curadoria maravilhosa foi feita pela escritora Lorrane Fortunato.
Nas últimas duas semanas, assisti ao hypadíssimo Vermelho branco e sangue azul pelo Prime Video e amei, assim como tinha amado o livro quando li. Também assisti ao documentário Eu não sou seu negro, construído a partir de reflexões do escritor James Baldwin sobre a construção da subjetividade de pessoas negras e as lutas por direitos civis e contra a discriminação racial nos EUA. Esse entra para a categoria de “eu não sei por que ainda não tinha visto”, pois é incrível! Está no Globoplay.
Por hoje é isso.
Um abraço,
Lethycia Dias
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