"Arte" preguiçosa - Uma mulher que escreve #102
A arte está no processo ou Por que gerar coisas em segundos para "entrar na trend" não é arte
Olá, pessoas que leem!
Tenho uma tia que é muito talentosa em tarefas manuais. Quando eu era criança, nas festinhas de aniversário dos meus primos, era sempre ela quem fazia o arco de balão e posicionava os enfeites e doces na mesa junto com o bolo. Ela também fazia bordados lindos, e várias vezes, minha mãe pagou para que ela bordasse toalhas que daríamos de presentes a amigos e conhecidos.
Uma vez passei as férias escolares na casa dessa tia e minha mãe comprou os materiais para que ela me ensinasse a bordar. Depois de me explicar o básico - como passar a linha pelo buraco da agulha, como segurar a agulha, em que direções enfiá-la nos furinhos do tecido para formar os pontos certos - minha tia escolheu para mim um modelo bem simples da revistinha de bordado em ponto cruz: uma fila de joaninhas bem vermelhas.
Passei as próximas semanas concentrada nas minhas joaninhas. Não era um desenho difícil. Eram poucas cores, quase nenhuma variação de formato. Mas cada pequeno erro me irritava pela necessidade de que fosse corrigido.
Naquelas férias, não cheguei a concluir as três joaninhas do desenho da revista. Devo ter parado na metade da segunda, irritada com a meticulosidade do trabalho. Voltei à casa dos meus pais e nunca mais retomei as “aulas” de bordado, compreendendo que não era boa naquilo como também não era boa em esportes ou matemática. Fazer o quê?
O bordado não me fez muita falta na vida e eu sequer pensei nisso por anos, até pouco tempo atrás, quando me dei conta de que pessoas que sigo na internet estavam se dedicando a hobbies manuais como costurar e fazer crochê. Uma delas, May Mortari, está “crochetando” uma manta quadradinho por quadradinho, em que cada pedaço é inspirado em um livro que lê.
Ao ver um vídeo de May sobre por que começou a fazer crochê, eu fui transportada no tempo e me peguei pensando em por que abandonei o bordado quando mal havia começado. Então me dei conta de que eu não queria começar pelas joaninhas; queria fazer o mesmo beija-flor colhendo néctar de uma flor multicolorida que minha tia fez numa toalha que me deu de presente. Queria saber bordar o meu nome com uma florzinha no canto de cada letra. Queria fazer ursos e barquinhos para quartos de menino e bailarinas para roupinhas de menina.
Eu queria… ser boa. Sem treinar até chegar lá. Queria saber sem de fato aprender. Como uma coisa que pudesse vir pronta.
Fazendo uma analogia com um assunto que faz parte da minha vida hoje em dia, era como se eu quisesse escrever o Soneto de Fidelidade logo depois de ter aprendido a rimar sem antes fazer nenhum poeminha brega. Ou como se eu quisesse passar em um concurso para Auditor Fiscal da Receita na primeira tentativa, sem anos de preparo anterior nem milhares de questões e simulados respondidos como treino.
Diferente da minha experiência com o bordado, na escrita, eu fui paciente. Talvez porque eu quisesse ser escritora muito mais do que queria aprender a bordar. Ou porque todas as pessoas que liam minhas redações, histórias e poemas na infância e adolescência me elogiassem e dissessem para continuar. Não que a minha tia tenha me desestimulado ou depreciado. Mas o incentivo faz diferença!
Ou talvez porque a leitura e a escrita são coisas que exigem repertório, e só depois de ler e escrever bastante é que você percebe que seus primeiros textos eram ruins, porque os de agora parecem melhores. Enquanto isso, no bordado, cada ponto errado ficava evidente na mesma hora.
Expliquei uma vez, em entrevista para o podcast Andarilhos do Imaginário, que a gente só fica bom sendo ruim. Antes que eu publicasse meu primeiro conto na Amazon, precisei preencher dezenas de páginas de cadernos com histórias inacabadas ou ruins. Meu livro de não ficção, Elas Falam Por Si, passou por quatro revisões antes de chegar à versão que está à venda hoje em dia. E acho que é assim para todo escritor, desenhista, músico, atleta… A gente vê o livro na prateleira da livraria mas não sabe quanto tempo levou para ser escrito, quantas vezes o autor olhou a tela do computador em branco sem saber como continuar. A gente vê a cesta ou o gol sendo feitos no jogo oficial, mas não sabemos quantos foram os erros durante o treino. A gente não sabe quantos rascunhos o quadrinista descartou porque o desenho não ficou bom.
É por isso que me dá uma vontade imensa de revirar os olhos e fechar a aba da rede social quando vejo alguém dizer que a possibilidade de um software de inteligência artificial generativa produzir imagens “no estilo” visual de um estúdio de animações em 2D é uma forma de “democratizar” a arte, porque assim não há mais “monopólio da técnica”.
Pra começar que inteligência artificial não “faz” nada. Só busca aquilo que já existe e está disponível na internet - que foi feito por alguém e pode e deve ter direitos autorais -, manipula e mistura tudo gerando uma cópia instantânea que atenda razoavelmente ao prompt feito pelo usuário. Às vezes sai um boneco com seis dedos e tem gente que acha que isso é o auge da arte visual.
Sinto muito informar, mas se você digita comandos pra um robô gerar imagens (a partir de plágio) em segundos, você não é artista. Você é um preguiçoso.
Querer que qualquer pessoa possa ter sua própria foto transformada em um desenho do Studio Ghibli em segundos não é transformar essas pessoas em artistas, mas sim esvaziar de sentido o próprio fazer artístico dos filmes do Studio Ghibli que as pessoas dizem amar tanto. Um estúdio que faz filmes críticos à guerra e ao militarismo, com mensagens sobre preservação ambiental e sobre a conexão entre o ser humano e a natureza.
Enquanto isso, a IA generativa destrói o mundo para fazer imagens no “estilo Ghibli” porque funciona a partir de data centers que consomem enormes quantidades de água para manter seus sistemas. Isso em tempos de mudança climática, quando a água já se torna escassa até onde jamais imaginamos que se tornaria. Tudo isso para que você possa seguir a trend do momento, que será esquecida quando a próxima bobagem momentânea tomar conta das redes sociais.

Dizer que artistas detém algum tipo de “monopólio” sobre a técnica também é algo que não faz sentido. Não é como se estivéssemos trancados nas torres de altos castelos onde só os filhos de famílias importantes podem entrar para aprender as artes secretas da literatura e do desenho. Todo mundo começou de algum lugar e se aperfeiçoou de alguma forma, seja com um amigo que já sabia, ou lendo manuais, fazendo cursos e oficinas. Vendo vídeos no YouTube. Ouvindo podcasts. Acompanhando a newsletter ou as postagens de rascunho de outro artista. Demora. Leva tempo. Pode não ser barato quando você clica no primeiro resultado da pesquisa que faz online, mas se souber procurar melhor, nem sempre custa dinheiro.
Monopólio é quando a Amazon vende um leitor digital que se torna sinônimo de leitura de e-book, e escritores independentes se veem forçados a continuar publicando seus livros na plataforma do KDP a preços irrisórios porque, se não estiver lá, ninguém vai ler. Monopólio é quando uma única empresa produz papel para todo um país e qualquer aumento de preço faz com que livros se tornem mais caros para o consumidor final. Monopólio é quando em todo cinema que você vai há três ou quatro salas exibindo o mesmo filme de boneco que você precisa ter assistido a 15 filmes anteriores para entender.
Um escritor querendo ser remunerado adequadamente pelo seu trabalho (que leva horas, dias, meses, e só é possível graças a muito tempo de prática) é só mais um trabalhador querendo sobreviver, como bem lembrou Rê Correa. E ter uma empresa multinacional criando um software que pode usar os trechos do livro desse escritor para “gerar”, publicar e vender livros pelos quais ele não vai receber nada é apenas precarização e fascismo.
Se alguém realmente acredita que IA’s podem tornar “artista” quem nunca pôde ser… Eu só lamento por essas pessoas. Como bem disse o quadrinista Thiago Bertoni, via Bluesky,
democratizar a arte não é toda pessoa ter um desenho bonitinho feito em segundos, democratizar arte é toda pessoa ter tempo e saúde pra aprender e produzir arte se quiser mas principalmente ter condição pra pensar e se relacionar com arte com introspecção
Porque a arte não está no resultado final, naquilo que a gente vê ou toca ou ouve. A arte existe por si mesma, no fazer por fazer, e não precisa ter utilidade ou ser bonita ou “ensinar” nada. O prazer do artista está no processo, no caminho.
Eu não sentiria o orgulho que senti da meu próprio romance - ainda não publicado - se não tivesse experimentado a sensação de construir minhas protagonistas em toda a sua complexidade, letra por letra, durante meses. Você pode ler meu processo nas edições de 2023 desta newsletter. Fico imaginando se tivesse simplesmente pedido ao ChatGPT para escrever um romance sáfico de 52 mil palavras com protagonistas como as minhas. Spoiler: ele seria incapaz de fazer algo bom, como Wlange Keindé mostra nesse vídeo.
Fico imaginando o que seria das pinturas de Renoir se ele tivesse preguiça de fazer as pinceladas uma por uma.
Se o David existiria se Michelangelo (ou os aprendizes dele) achasse que esculpir mármore dava muito trabalho. Melhor esperar alguns séculos até alguém inventar a impressora 3D, aí a gente pode fazer um monte de David’s pra vender como souvenir!
Se Dante tivesse deixado de escrever os 14 mil versos da Divina Comédia porque era muita coisa. Não duvido que foi um trabalho extenuante, mas eu aposto que ele se divertiu falando mal de seus desafetos e imaginando os castigos que eles receberiam no Inferno. O ódio move montanhas!
Li, ouvi e assisti
Estou lendo As cartas de John Lennon, organizado por Hunter Davies (falei desse livro na edição passada), junto com A convidada, de Simone Beauvoir, Pillow Talks: Eros, de Sasyk e A Síndrome da Boazinha, de Harriet B. Braiker. O da Simone ficou bastante tempo na minha estante, e apesar de ser uma leitura interessante, está sendo cansativo. A tal da convidada, uma amiga que a protagonista convida para ir morar na cidade grande com ajuda dela e do namorado, é uma chata e eu já teria mandado ela ir embora de volta pro interior. O segundo é um conjunto de contos eróticos com os personagens do quadrinho Pillow Talks, além de um quadrinho e de rascunhos do autor.
O último é um livro que resolvi ler porque acredito que sofro do mal de que ele fala, ou seja, a necessidade de agradar as outras pessoas a todo custo - incluindo a própria saúde mental. Eu mal comecei e já estou ciente de que não vai ser uma leitura feliz.
Estou ouvindo o podcast Escute as mais velhas, em que cada episódio é uma entrevista com uma mulher fundamental para o feminismo e os direitos humanos no Brasil. Os três episódios disponíveis até agora estão ótimos!
Também andei ouvindo a playlist nós mulheres meio sylvia plath, clarice lispector, virginia woolf e etc, que só tem música de mulher triste. A maior parte do conteúdo já estava favoritada antes de eu dar play, o que eu acho que diz muito sobre o meu gosto musical.
Assisti a vários filmes que foram removidos de seus streamings ultimamente, então, vou dar uma dica que vocês podem assistir: o filme Sobre sete ondas verdes espumantes é um documentário poético sobre a obra de Caio Fernando Abreu. Apenas isso. Está no Prime Video.
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Eu fico por aqui.
Um abraço,
Lethycia Dias
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aplaudindo de pé esse texto!!!!!!!