O "tempo certo" de cada livro - Uma mulher que escreve #101
Alguns pensamentos sobre a minha relação com os livros, a leitura, como isso muda com o tempo e uma convicção que permanece
Olá, pessoas que leem!
Como vão as leituras de vocês? O ano mal começou e eu já tenho um candidato a entrar pra minha futura lista de favoritos de 2025! Falo de O Palácio da Memória, que mencionei na edição passada desta news. E decidi começar o texto de hoje com essa pergunta porque todo início de ano eu fico cheia de “vontades” em relação às minhas leituras. Não vou falar “metas” porque nem sempre cumpro, e a verdade é que elas já começam desde o fim do ano anterior!
Nunca fui de criar metas numéricas, porque eu realmente não me importo com quantos livros li num ano desde que tenha me divertido. Por causa disso, eu crio metas mais ligadas a outras necessidades. Em 2023, por exemplo, me concentrei em livros de ficção e não ficção com temática ligada a raça e letramento racial porque estava estudando para escrever o meu romance (falei do processo aqui). Ano passado, li aproximadamente 18 livros de não ficção com temas que eu considerava atuais e urgentes para me preparar para a prova discursiva do Concurso Público Nacional Unificado (dois deles eram ligados ao tema sobre o qual escrevi, vejam só!).
E como eu vinha de um período de mais ou menos quatro meses lendo coisas que não necessariamente me apeteciam, embora me interessassem, depois da prova eu estava sedenta para ler coisas que me divertissem! Eu queria ler todos os livros bissexuais da minha estante em setembro e todos os livros de horror possíveis em outubro e respirar contos de Natal em dezembro.
E cheguei lá no finalzinho do ano já cheia de vontades para 2025. Vontade de ler Fogo & Sangue para voltar a entrar no universo de As Crônicas de Gelo e Fogo, porque a segunda temporada de A Casa do Dragão me deixou com saudade. Vontade de ler também O Cavaleiro dos Sete Reinos porque a série de mesmo nome está prevista para estrear este ano. Vontade de ler muito livro LGBT porque achei um absurdo eles não serem nem a metade das minhas leituras em 2024. Vontade de colocar em dia as minhas leituras de Virginia Woolf. Ler o livro com todos os contos dela, na edição da Cosac Naify que até hoje é o livro mais caro que já comprei. Vontade de ler mais livros sobre escrita. Vontade de ler mais dos livros comprados há vários anos e ainda não lidos. Vontade de ler ao menos um calhamaço, porque sempre fico deixando pra depois. Vontade de ler alguma coisa em inglês que não sejam livros ilustrados para crianças. Vontade de desapegar de livros, esvaziar espaço na estante.
Dez anos atrás, eu teria uma síncope se alguém me sugerisse isso. Pra começar que nem estante eu tinha. Meu sonho era ter uma enorme, cheia de livros igual às dos booktubers que eu assistia. Hoje eu tenho uma e sofro toda vez que preciso limpar. Enquanto fazia a minha limpeza anual de dezembro (nem tão anual assim, já que não limpei em 2023), fui separando alguns livros que definitivamente já não quero mais manter na coleção e acrescentando na pilha onde estavam alguns exemplares de que não gostei tanto assim quando li.
Em maio desapeguei de aproximadamente 40 livros quando um projeto de biblioteca itinerante passou pelo bairro próximo ao meu, fazendo empréstimos e aceitando doações. Coloquei numa caixa tudo aquilo que eu não queria mais, inclusive livros de pessoas de quem não pretendo ler mais nada, pra quem não quero dar mais um centavo como leitora. Bem Marie Kondo: não me faz feliz, vai embora!
É engraçada essa mudança de postura. Fui uma adolescente apaixonada por livros que tinha pouquíssimos volumes para chamar de seus porque meu pai via os livros como um prazer efêmero, que eu deixaria de lado depois de ler. Melhor continuar pegando emprestado na biblioteca do colégio. Ele não entendia o quanto alguns livros se tornaram especiais pra mim, e quando comecei a ter meus próprios exemplares, tudo o que eu queria era que a quantidade deles aumentasse. Agora, planejando deixar a casa da minha mãe e passar a morar sozinha no segundo semestre do ano, tudo o que eu quero é diminuir a coleção, fazê-la ocupar menos espaço, juntar menos poeira.
Mas em toda a minha vida de leitora, uma coisa não mudou: a minha convicção de que existe o “tempo certo” pra cada livro. Vou explicar melhor.
Às vezes você pega um livro com certo tipo de enredo e certa linguagem e se diverte lendo, acha ótimo e até indica pra várias pessoas. Depois de alguns anos, você pode vir a reler esse mesmo livro e já não achar a mesma graça, não gostar tanto assim. É que o “tempo” daquele livro tinha sido lá no passado. Você mudou e está no momento pra outras leituras. O contrário aconteceu comigo lendo Grande Sertão: Veredas. Tentei pela primeira vez aos 16 anos com um exemplar da biblioteca da escola, e achei dificílimo, além de uma chatice tentar insistir na leitura de um livro que eu nem estava entendendo. Anos depois, aos 23, dei uma nova chance ao livro numa edição diferente. Já conhecendo o enredo e tendo experimentado ler trechos em voz alta, vendo que assim se tornava menos complicado, foi fácil passar das primeiras páginas. E continuar lendo, de pouquinho em pouquinho, 3% por dia na contagem do Kindle, até acabar. E amar!
E eu acredito que alguma coisa no universo determina isso. Eu não tinha como amar Grande Sertão na primeira tentativa, porque a leitura “certa” era a segunda.
Agora estou vivendo mais um “momento certo” para um livro que passou anos na minha estante, e que pensei até em descartar. Em 2017, comecei a usar o Spotify, e aproveitei para ouvir a discografia completa dos Beatles. Eu nunca tinha experimentado encontrar tanta música de um artista só com facilidade num mesmo lugar, então aquilo pra mim era incrível. E naquele ano também, numa ida ao shopping, comprei o livro As cartas de John Lennon, organizado por Hunter Davies, numa daquelas feirinhas itinerantes que são montadas no meio do corredor e vendem tudo muito barato. Eu estava na minha fase mais fã de Beatles e achava que tinha encontrado um grande tesouro!
Cheguei em casa e coloquei o livro na estante. E só o tirei de lá pra limpar a poeira e reorganizar a prateleira, uma vez por ano. Até agora.
Quando peguei As cartas de John Lennon da minha fileira de livros de não ficção, no fim de dezembro do ano passado, eu pensei que, se não tinha tentado ler esse livro até então, talvez não valesse a pena continuar com ele. Mas alguns dias depois, já em janeiro de 2025, pensei em dar uma chance ao John. Abri, dei uma folheada e li o texto de apresentação escrito por Hunter Davies. Hunter foi biógrafo dos Beatles e passou anos recolhendo as cartas escritos por John Lennon enquanto preparava esse livro. E ler os apontamentos dele, conhecer essa busca por papéis datilografados, bilhetes amassados e cartões postais envelhecidos, me deixou empolgada para ler.
Os únicos poréns eram o fato de o livro ser grande e pesado, o que dificultava para ficar levando comigo nas minhas idas ao trabalho, e a possibilidade de eu acabar me cansando se tentasse ler continuamente, como a gente lê um livro de romance ou de suspense. Decidi então ler aos poucos, uma carta por dia. Depois de comprar uma cartela de post-its maiorzinhos só pra usar nesse livro, eu estava pronta para começar!
Hunter Davies explica em nota que tentou agrupar as cartas por assunto e época, e que cada uma delas é precedida por um breve texto falando sobre o que John estava vivendo na época, apresentando o destinatário e o contexto. Em seguida, normalmente na mesma página, o livro traz a imagem escaneada da carta e uma transcrição traduzida.
Quando enfim cheguei à primeira carta, depois da apresentação e de uma breve biografia e da nota do organizador, li o texto que a precedia, e ao visualizar a imagem de um cartão postal enviado por John aos 10 anos de idade a uma de suas tias, eu simplesmente… Passei os olhos por cima e li. Compreendi um texto em inglês em um livro. Depois, li também a transcrição, e percebi que aquilo que eu tinha entendido era mesmo o que a imagem dizia.
E me dei conta de que eu tinha nas minhas mãos 400 páginas de material para treinar o inglês no ritmo que me conviesse, com um assunto que muito me interessa, porque tinha os textos originais com tradução ao lado para comparar. Estou desde 2017 com esse livro, e quando o comprei, eu não imaginava que um dia seria capaz de ler as imagens. Como contei na edição passada, eu não era confiante com o pouco conhecimento autodidata de inglês que tinha até começar a estudar o idioma por um curso particular. E decidi ler esse livro justo agora, que estou no nível intermediário de inglês e buscando por leituras mais complexas do que os textos usados nas aulas e os e-books infantis que encontrava gratuitamente na Amazon…


Eu não me lembro como foi a sensação de ler um livro “grande” em português pela primeira vez, porque os livros fazem parte da minha vida há muito tempo. Mas perceber que eu poderia ler os textos escaneados das cartas de John Lennon foi uma emoção imensa. Um sentimento de autonomia e confiança tão grande que não sei quando senti antes. Talvez só quando li um livro inteiro em espanhol.
Para baixar um pouco a minha bola, na carta seguinte, escrita por um John jovem-adulto pré-Beatles, eu já tive dificuldade. Os garranchos eram muitos! Para meu alívio, Hunter Davies já adiantou que boa parte das cartas é datilografada.
Li, ouvi e assisti
Além d’As cartas de John Lennon, estou lendo também Doze contos peregrinos, de Gabriel García Márquez e Delilah Green não está nem aí, de Ashley Herring Blake. O primeiro é outro livro comprado há anos, e tem dois contos que li anos atrás e gostei muito! É também uma ótima reunião de histórias sobre latinoamericanos vivendo coisas inusitadas no exterior. Já Delilah Green é uma comédia romântica sáfica envolvendo um casamento numa cidadezinha chata, uma fotógrafa descolada de Nova York e uma jovem mãe-solo. Comecei hoje e pretendo me divertir!
Terminei de ler Ilhados e é muito mais do que um romance de verão. É uma história de descoberta de si mesmo, não apenas da própria sexualidade pelo narrador, mas também do próprio lugar no mundo. E envolve também questões ambientais e políticas, além de usar muito bem o cenário como reflexo dos sentimentos do protagonista.
Terminei de ler O que é isso, companheiro?, e nossa, como foi difícil ler os trechos referentes à prisão e às torturas sofridas pelo autor! Eu já esperava, por isso, mas a gente nunca sabe bem o que vai sentir lendo temas como esse. Porém, é importante falar deles para que não sejam esquecidos.
Ouvi por inteiro o podcast Caso das 10 mil, da Folha de São Paulo, que conta a história de uma clínica de abortos que funcionou por 20 anos em Campo Grande - MS, e de como uma reportagem jornalística expondo essa clínica (embora a existência dela fosse fato conhecido na cidade) levou o aborto para o centro do debate político no Brasil, gerando pautas que são discutidas até hoje e dando evidência a figuras e instituições ainda importantes. É impressionante. E doloroso de ouvir para quem acredita que mulheres deveriam ter autonomia sobre os próprios corpos e vidas.
Também indico o episódio “Não era amor, era cilada”, o número 415 do Viracasacas Podcast, em que os hosts e duas convidadas falam do suposto progressismo de empresas e marcas na publicidade e nas suas política internas, que parece estar “saindo de moda” nos últimos tempos à medida em que grandes empresas abandonam discursos anteriores de apoio a minorias. A discussão foi muito boa e ajuda a entender melhor o cenário atual.
Assisti a muitos filmes nos últimos dias. Recomendo o documentário indicado ao Oscar Sugarcane (2024), sobre a violência sofrida por indígenas em internatos administrados pela Igreja Católica no Canadá. O poético Em Três Atos (2015) faz lindas reflexões sobre vida, morte, envelhecimento e o corpo feminino que envelhece. Está na Netflix, mas só até o dia 05 de fevereiro. Corram pra ver! E o também indicado ao Oscar Flow (2024) é uma animação que acompanha um gato tentando sobreviver a uma catástrofe, precisando para isso se unir a outros animais. É lindo, mas vai te dar ansiedade climática!
Por hoje é só!
Um abraço,
Lethycia Dias
Meus livros | Meu Bluesky | Entre no meu canal do Telegram | Visite meu site
Uma mulher que escreve é um espaço pessoal para registro de processo criativo e reflexões sobre escrita, literatura e arte em geral. Se gostou deste texto, compartilhe em suas redes sociais, leia edições anteriores ou se inscreva na newsletter para receber mais!
Caso se interesse por algum livro recomendado aqui, considere comprar pelos links deixados no texto: cada compra feita na Amazon a partir dos meus links gera pra mim uma pequena comissão que me ajuda a continuar escrevendo! Você também pode colaborar de forma direta fazendo um Pix para lethyciasdias@gmail.com doando qualquer valor!