O que você está fazendo na plateia? - Uma mulher que escreve #64
O dia em que entendi que não podia ficar esperando "ser descoberta" como escritora
Olá, pessoas que escrevem!
Dois dias depois de enviar a última edição da news, eu já tinha dado por encerrada a minha maratona do Oscar e pude finalmente começar a assistir Daisy Jones And The Six. Vi os três primeiros episódios naquele dia e, embora muita gente tenha criticado a amenizada que a série deu na juventude da Daisy, que no livro teve muito mais drogas e álcool do que na tela, eu gostei de uma coisa específica. A meu ver, o início da série foi melhor do que o livro em deixar clara a busca de Daisy pela arte como uma forma de se expressar.
Enquanto lia o livro, gostei bastante da fase inicial da Daisy pela forma com que ela se colocava como alguém que queria ser uma grande artista, ao invés da musa inspiradora de um (homem) artista qualquer. E na série, houve um momento específico que mexeu bastante comigo e me inspirou a trazer o assunto desta edição. Não é sobre a série. Eu juro.
Ainda no primeiro episódio, Simone Jackson, que viria a se tornar uma grande amiga de Daisy, entra na história no momento em que Daisy a aborda dizendo ser sua fã. E na cena seguinte, ela faz a Daisy uma pergunta que é o equivalente a estalar os dedos na frente de alguém e dizer: Acorda pra vida!
Deixo o print abaixo para que vocês também sintam o impacto.
Acontece que anos atrás, eu também recebi um “acorda pra vida”. E se isso não tivesse acontecido, eu acho que nem estaria escrevendo isso aqui hoje.
A minha Simone
Desde que me entendo por gente, eu já sabia que queria ser escritora. Segundo meu pai, eu já falava em “fazer livros” antes mesmo de ser alfabetizada, mas não posso confirmar. E eu busquei por isso, sem saber bem pra onde estava indo, durante toda a minha vida. O mercado editorial não tem um caminho óbvio. Todo mundo começa sem ter a menor ideia de como escrever, como publicar, como fazer as coisas.
Comecei a aprender um pouco na internet, mas durante um bom tempo, eu também tive aquela ilusão de que um dia seria “descoberta”, e só entendi que não era bem assim quando comecei a acompanhar autores já publicados. Mas eu tinha cadernos onde escrevia contos, crônicas e poemas enquanto esperava pelo momento em que teria a Grande Ideia para um romance que “me revelaria” ao mundo. Bobagem.
Eu não me sentia validada com as minhas histórias, não tinha coragem de mostrar pra qualquer pessoa, e embora já tivesse publicado textos em antologias de concursos literários (o primeiro deles aos 13 anos de idade!), achava que só seria uma escritora “de verdade” quando tivesse um livro só meu, com o meu nome na capa, publicado por uma editora. Em formato físico, é claro. Eu ainda não consumia e-books.
Tudo isso mudou com um corte de cabelo.
Lá por volta de 2015, eu conheci o movimento de mulheres crespas e cacheadas que estavam largando a chapinha e a progressiva para manter seus cabelos naturais. Tentei fazer o mesmo, e com o tempo, fui aprendendo a cuidar do meu cabelo do jeito que ele precisava e fui me apaixonando cada vez mais por ele. Passei o ano de 2017 inteiro cultivando um cabelão que chegou até a minha cintura. Mas fui me cansando daquele comprimento e do trabalho que dava, então no início de 2018, tomei uma decisão radical. Cortaria acima do ombro, e pela primeira vez na vida faria isso com uma cabeleireira que entendia de cabelo cacheado, ao invés de cabelo alisado.
A partir de uma indicação que recebi em um grupo no Facebook, marquei um horário com uma mulher chamada Odésia. O Instagram dela mostrava fotos de pessoas com cabelos coloridos, com dreads e com cortes totalmente diferentes do que eu estava acostumada a ver nas revistas dos salões baratos de bairro que eu sempre tinha frequentado. No dia marcado, falei a ela o comprimento e o efeito que eu queria, e ela amarrou meu cabelo num rabo de cavalo baixo e cortou de uma vez, para depois só acertar as pontas. Enquanto ela fazia isso e eu olhava o cabelo recém-cortado na bancada do espelho à minha frente, nós conversávamos. E Odésia me perguntou:
— O que você faz?
Sem entender bem a pergunta, respondi que estudava Jornalismo. Eu estava entrando no sétimo período, já no último ano da graduação.
— E o que mais? — Ela insistiu. — Do que você gosta, o que você faz de legal?
— Eu sou boa em escrever — respondi timidamente, como se eu não tivesse passado vários semestres estudando redação e técnicas de escrita jornalística e acadêmica, como se isso não fosse o mínimo na profissão que eu tinha escolhido, ou como se não soubesse usar palavras para contar histórias.
Então Odésia fez a pergunta que mudou tudo na minha cabeça:
— E o que você está fazendo com isso?
Um tapa na cara teria doído menos.
Saí de lá satisfeita com a minha nova aparência (o corte ficou muito lindinho e desde então eu repito variações dele), porém incomodada com aquela pergunta. Porque, no fundo, eu sabia a resposta. Eu não estava fazendo nada. Estava só esperando que a musa inspiradora baixasse sobre mim me dando um livro pronto e que uma oportunidade de publicar caísse no meu colo. Não era assim que as coisas aconteciam.
Nos dias seguintes àquilo, procurei por possibilidades. Eu ainda não conhecia o processo do KDP da Amazon, não sabia da existência de agências literárias ou de qualquer outra alternativa além de enviar um livro para uma editora. Ainda achava que concursos literários eram a única forma de ir abrindo espaço, então procurei saber dos que estavam abertos naquele momento. E assim, dei de cara com o edital de uma pequena editora para publicar uma antologia de contos sobre sereias. Gostei do tema, vi que podia participar, então botei a cabeça pra funcionar e escrevi meu conto, que enviei nos últimos dias do prazo de inscrição. Pouco tempo depois, eu soube que tinha sido selecionada.
Sereias: Encantos & Perigos foi a minha primeira publicação comercial. Diferente das minhas participações anteriores em antologias, aquele livro não tinha o objetivo de "apenas incentivar a literatura”, sendo distribuído só entre os autores. Ele seria vendido, publicado por financiamento coletivo, que as pessoas deveriam apoiar para adquirir exemplares. Eu assinaria um contrato e receberia royalties de publicação!
Pouco tempo depois de me inscrever naquele edital, eu publiquei um conto antigo no Wattpad para que fosse lido por pessoas que não me conhecessem, porque desconfiava das opiniões de amigos e parentes. E tive leituras e recebi elogios. Uma treta no Twitter envolvendo desvalorização de literatura jovem (quem viveu sabe) me levou a seguir e acompanhar várias pessoas do mercado literário, desde autores independentes e publicados tradicionalmente até pessoas que trabalham em editoras. Uma das autoras que participaram de Sereias tinha um livro publicado na Amazon, e eu comprei, li e passei a ler outros e-books pelo app do Kindle. A editora de Sereias conseguiu reservar horários no estande de uma outra editora na Bienal do Livro de São Paulo e organizou tudo para fazer o lançamento lá. E eu gastei o meu primeiro salário do meu primeiro emprego viajando até lá pra lançar um livro dando autógrafos e ver os autores de livros nacionais que eu tinha conhecido nos últimos meses. E no fim daquele ano, recebi meu primeiro pagamento de royalties por aquele livro. Foi menos do que eu pago de mensalidade da Netflix hoje em dia, mas fiquei feliz da vida porque eu nunca tinha imaginado que um dia seria paga por ter escrito alguma coisa.
E tudo isso só aconteceu porque a “minha Simone” me disse pra acordar pra vida. Mas não ficamos amigas como a Simone e a Daisy da série. Na verdade, Odésia nem imagina o que fez por mim.
Com o tempo, passei a ler mais livros de autores independentes e comecei a pesquisar sobre autopublicação. Aprendi na prática todo o processo de transformar um texto digitado no Word em um livro porque produzi um livro-reportagem no meu TCC, e ao contrário dos meus colegas de turma, eu não tinha dinheiro para terceirizar os serviços de revisão, produção de capa e diagramação antes de enviar para a gráfica, então tive que fazer tudo sozinha. Cumprindo o que dizia quando criança, fiz um livro.
No ano de 2019, já formada, escrevi Mesmo que eu vá embora. E já conhecendo muito bem o KDP, resolvi publicar. Dessa vez eu paguei pela revisão e pela capa, porque tinha entendido que eu não era competente em todas as etapas. Eu me via como escritora desde o ano anterior, mas também entendia que eu já era escritora muito antes disso. E a partir dali, não parei mais de fazer coisas para alcançar o que queria. Dando alguns tropeços, errando aqui e ali, acertando em algumas coisas, mas seguindo. No palco, ao invés da plateia.
As últimas
Fiz por conta própria algumas alterações na próxima história que vou publicar, adequando alguns detalhes e melhorando um diálogo fundamental para o desfecho. Já recebi a história de volta da leitura crítica, e agora, estou mexendo de novo no texto.
Comecei a reestuturar o meu romance que está em hiato há um ano e começou a ser escrito há dois. Eu sei que vou precisar recomeçar porque a versão anterior tinha vários problemas de narrativa, mas também to feliz com isso porque só o novo planejamento já mostra potencial pra uma história bem mais enxuta, ágil e com menos personagens do que a versão anterior – que tem 66 mil palavras sem ter sequer chegado à metade.
Assisti um filme sem dublagem e percebi que estava entendendo uma boa parte das falas sem precisar da legenda. Eu sei que só tive essa facilidade toda porque os diálogos eram bem parecidos com o que estou estudando no curso de inglês (como cumprimentar, se apresentar, falar da família, trabalho e rotina), mas isso me deu uma confiança de milhões e eu já baixei e-books gratuitos e HQs disponíveis no Kindle Unlimited porque pensei “Não é que eu to aprendendo mesmo?”. Minha nova meta é conseguir ler alguma coisa em inglês até o fim do ano. O objetivo final é poder cantar qualquer música da Taylor Swift sem me enrolar.
O que li, ouvi e assisti
Terminei de ler Eu vejo Kate 2 e ainda consegui ficar chocada com o final, mesmo que os últimos eventos fossem um tanto previsíveis. Conhecendo bem os personagens a partir do livro 1, foi fácil sacar o que aconteceria, exceto pelo últimos capítulos.
Na noite passada, li do iníco ao fim Cada tridente em seu lugar, de Cidinha da Silva. É uma coletânea de contos e crônicas sobre desigualdade social, relações raciais, ancestralidade e religiosidade de matriz africana. Além disso, usa a oralidade de um jeito delicioso. Quase todos os textos se parecem com uma conversa entre você e a autora. Conversar com Cidinha, inclusive, foi algo que eu fiz quando comprei o livro diretamente com ela, na feira e-cêntrica de 2020, em Goiânia - dias antes do início oficial da pandemia.
Após terminar O homem vazio, comecei a ler A terceira vida de Grange Copeland, o primeiro romance de Alice Walker, que foi lançado no Brasil em 2020. A narrativa acompanha diferentes gerações de uma família negra no sul dos Estados Unidos, que tem sua vida modificada para sempre com a partida do personagem que dá título ao livro. É uma história cheia de rancor e violência com pessoas detestáveis e eu não faço ideia do que esperar até o fim. Pra quem quiser ler, no momento está disponível no Kindle Unlimited.
Andei ouvindo Endless Summer Vacation, o novo da Miley Cyrus, e o The Life Aquatic Exclusive Studio Sessions Featuring Seu Jorge, com o Seu Jorge cantando músicas do David Bowie. Também ouvi o episódio 132 do podcast Esqueletos no Armário, sobre os filmes A lei do desejo e Má educação e sobre a estética e os temas frequentes nos filmes do Almodóvar. É um dos meus diretores favoritos, então depois de ouvir isso, assistir a mais filmes dele é algo que com certeza vou fazer!
Assisti a biografia Harriet (que será removida da Netflix no dia 31, então corram se quiserem ver a história da mulher negra que ajudou várias pessoas escravizadas a fugir do sul dos EUA para o norte, onde poderiam ser livres) e também o Pânico do ano passado. Não consegui ir ao cinema para assistir o novo da franquia, então algum dia farei isso pelos meios alternativos.
Recebi a dica de treinar o inglês vendo no original algum filme ou série que eu já tivesse visto tantas vezes a ponto de ter falas decoradas, então usei isso como desculpa pra assistir Titanic mais uma vez e foi uma experiência completamente diferente. Não existe nenhum filme que eu tenha visto mais vezes do que esse, e é impressionante como a cada vez eu percebo algum detalhe novo.
Por hoje, é isso.
Antes de me despedir, quero voltar ao tema dessa edição e perguntar: vocês também receberam um “acorda pra vida” sobre alguma coisa que sonhavam em fazer?
Um abraço,
Lethycia
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Eu sempre acho intrigante como há algumas pessoas que atravessam a nossa vida em momentos-chave apenas para ajudar de alguma forma e depois somem. Eu não tive alguém que me desse um sacode assim, mas quando eu estava terminando meu mestrado em 2007, eu, que à época residia em Campina Grande, na Paraíba, tinha decidido ir embora pra Curitiba tentar a vida. Mas ao pesquisar o mercado de trabalho da minha área (TI) na cidade, me decepcionei. E estava sem saber o que fazer. Então um conhecido distante morava em Brasília e estava lá em Campina de férias e me sugeriu de vir pra cá. E eu vim. Chegando aqui, aluguei meu primeiro apartamento no nome dele porque precisava de três contracheques e eu não tinha. Com seis meses ele foi embora de Brasília e praticamente não tive mais contato. Mas até hoje me impressiona o quão relevante ele foi na minha vida, mesmo de passagem.
Adorei a edição de hoje!
estou nesse processo que vc menciona nessa edição: a de entender que há outras formas de escrever além da "tradicional", digamos assim. aliás, estar aqui no substack é uma dessas maneiras.
adorei as menções a Daisy e ao Titanic pq amo ambos haha
eu fui ver o Titanic no cinema recentemente e para mim foi algo totalmente novo também. é impressionante como um filme de 26 anos ainda arrasta multidões e, em termos técnicos, não perde em nada para os atuais. quando eu via enquanto criança, me atentava muito a história de amor em si, mas revendo percebi como é angustiante a água entrando no navio, as pessoas desesperadas e pulando no mar. aquele final quando o bote volta e vai batendo nos corpos congelados... puts, que coisa mais triste...
obrigada pela edição <3