Oh, Tempo Rei - Uma mulher que escreve #105
O tempo foi rei em transformar a minha forma de encarar certas coisas - um insight que eu tive enquanto ouvia Gilberto Gil ao vivo, em Brasília
Olá, pessoas que leem!
No último sábado, vivi uma experiência sem igual durante o show de Gilberto Gil no Estádio Mané Garrincha, em Brasília. A princípio, pensei em escrever sobre a emoção que tive ali, vendo uma das últimas apresentações de Gil durante a Turnê Tempo Rei. Mas eu acho também tive ótimas experiências em todos os shows em que estive desde o ano passado. Cada uma diferente da outra, mas muito parecidas em certo aspecto.
Por isso, resolvi contar por que foi tão especial pra mim ter estado em tantas apresentações de artistas que eu gosto, pra além do simples fato de ver e ouvir o artista ao vivo.

O ano era 2023 e eu tinha tomado a corajosa decisão de pedir demissão de um emprego que não valia o meu esforço, nunca mais enviar nenhum currículo e usar minha reserva de emergência para continuar pagando a minha parte nas contas de casa enquanto estudava para o meu próximo concurso público e aguardava ser convocada naqueles em que já estava aprovada.
Desde o ano anterior havia rumores de que o Brasil estaria incluído na The Eras Tuor, a nova turnê da Taylor Swift. As músicas da loirinha tinham me acompanhado da pré-adolescência à vida adulta; da fase “não sou como as outras garotas” ao pior dos corações partidos; da autoconfiança da canção Fearless à introspecção das músicas do folklore, no pior período da pandemia. E seria a primeira vez que ela de fato faria um grande show no Brasil, após sua primeira estadia aqui em 2013, quando eu não passava de uma adolescente sem mesada.
Eu, pessoalmente, torcia para que o show em terras brasileiras demorasse bastante a ser anunciado. Que houvesse tempo suficiente para eu ser convocada por algum órgão público, tomar posse, começar a trabalhar e passar a receber o salário decente pelo qual tinha me esforçado tanto. Mas não foi bem assim. As vendas de ingressos da The Eras Tuor aconteceram em junho de 2023, quando eu ainda estava desempregada e sem nenhum sinal concreto de melhoria da minha situação financeira. Eu jamais poderia comprar um ingresso, ainda que do tipo mais barato, e passagens de ida e volta para o Rio de Janeiro ou São Paulo, sem gerar uma dívida.
Quando os shows do Brasil aconteceram, em novembro daquele ano, eu havia acabado de completar um mês no meu cargo na prefeitura de uma cidade vizinha a Goiânia, e o que eu ganhava lá mal dava pra continuar pagando as consas. Mas eu acho que disse pra mim mesma que não perderia a oportunidade quando algum outro artista de quem gosto viesse para perto de mim. E, bicha, eu cumpri a promessa! Mais de uma vez!
Também em novembro, foi anunciada a Super Turnê de João Romania, o Jão. Eu vi que haveria um show em Goiânia, mas não me empolguei pra ir, afinal, eu não poderia pagar. Mas dois meses depois, já em 2024, recebi um dinheiro que não estava esperando e que seria 100% free pra gastar com o que eu quisesse. O Instagram, muito hábil em perceber meus interesses, continuava exibindo anúncios da Super Turnê, e por causa disso que eu sabia que, ao contrário da The Eras Tour, a Super Turnê não tinha esgotado ingressos em questão de horas. Para alguns dos shows ainda havia ingressos à venda, e foi assim que eu decidi que, se não tinha conseguido ver a Taylor, eu iria sim ver o Jão e cantar Meninos e meninas aos berros!
Entre tomar essa decisão e, de fato, entrar no Ginásio Nilson Nelson usando uma camiseta temática e um boné vermelho, muita coisa aconteceu. Tipo precisar ir ao show de Brasília, porque o de Goiânia aconteceria na véspera do CNU, se a prova não tivesse sido adiada. Eu conto essa história aqui. Ou precisar de várias sessões de terapia para me convencer de que eu merecia aquilo, eu merecia gastar dinheiro com uma coisa supérflua, me divertir, pular, chorar e me emocionar com músicas bobinhas.
É que eu tinha passado tanto tempo estudando e me esforçando para ter um emprego melhor, que me permitiria ganhar bem, e só então comprar roupas boas, viajar e me divertir, que achava que era errado fazer qualquer uma dessas coisas, gastando meu dinheiro, antes de “chegar lá”.
Assistir à série nova da Netflix? Só quando não precisasse mais estudar! Comprar uma roupa mais cara, porém de qualidade? Só quando estivesse ganhando bem a ponto de esse dinheiro não me fazer falta. Cuidar da minha pele? Meu anjo! Produto de skincare custa caro! Vai ter que estar ganhando muito bem pra poder se preocupar com isso! Show de música pop? Querida, você tem contas para pagar!
Eu não entendia que era possível reservar tempo e dinheiro para a minha diversão, porque achava todos os meus esforços deviam ser direcionados para o maior objetivo, o de subir na vida. Não percebia o quanto me fazia mal evitar pequenos prazeres. O quanto me privar de coisas que eu desejava tornava ainda mais penoso o esforço de algum dia ser merecedora daquilo.
Mas desde maio de 2023, quando Rita Lee nos deixou, eu estava muito ciente de uma coisa: os artistas que eu admirava não estariam aqui para sempre. Falo um pouco disso numa news mais antiga. Não é como se Jão, um moço com idade próxima à minha, estivesse fazendo as últimas apresentações de sua vida, mas era sobre não deixar para depois. Não contar que haveria um outro momento, mais adequado, com dinheiro sobrando no bolso e, ops! olha aqui um show que custa exatamente o valor que eu tenho nesse fim de mês!
Mas meio que também era sobre a última vez, porque depois de ver Jão ao vivo, eu vi Caetano & Bethânia celebrando suas carreiras de décadas, e então fiz questão de ver Gilberto Gil em sua última turnê real oficial. Eu só tinha um cartão de crédito de um sonho, e com alguma organização financeira - e nos últimos meses, um salário maior -, deu tudo certo.
E no último sábado, enquanto ouvia e cantava junto com um estádio inteiro os maiores sucessos do Gil, eu entendi uma coisa que tinha mudado na minha vida.
Depois do show de Jão, eu procurei tornar a cultura um pouco mais presente na minha vida. Ir a uma exposição de arte num mês, ir ao cinema em outro. Um evento literário aqui, uma apresentação mais baratinha ali. Essas coisas me faziam sentir viva, alegre, esperançosa, de um jeito que ler um livro comprado anos atrás, ouvir música no celular ou assistir a um filme num streaming não fazia.
De repente, eu não estava mais trabalhando para pagar contas, como fazia desde o meu primeiro emprego, mas trabalhando para comprar as roupas que eu queria; trabalhando para poder trocar a ração dos meus gatos por uma melhor; trabalhando para comprar os utensílios de cozinha para quando for saír da casa da minha mãe e ter meu próprio cantinho.
E o valor pago pelos shows já não parecia muito quando eu me lembrava de ter ganhado uma pulseira da amizade de adolescentes para quem pedi que tirassem fotos minhas. De ter chorado com a música Julho como se eu fosse o eu-lírico deixado para trás. De ter me emocionado com Caetano cantando Sozinho, enquanto via o estádio cheio das luzes nas lanternas acesas dos celulares de todas aquelas pessoas. De ter gritado Vaca Profana, numa catarse de quem ainda quer ver o leite mal ser jogado na cara dos caretas. De ver o pessoal todo lá embaixo, dançando aos pares com Esperando na Janela. Foi a primeira vez em que achei que a galera da pista, em pé, estava mais feliz do que eu na arquibancada.
E aí eu digo que o Tempo foi rei em me permitir viver todas essas experiências, sentir tudo isso e mudar a minha forma de ver as coisas. Sobretudo em me tornar mais gentil comigo mesma. Como o próprio Gil pede na canção, as velhas formas do meu viver foram transformadas. E isso não tem preço.

¹Eu simplesmente amo como há uma grande interseção entre fãs de Jão e fãs de Taylor Swift aqui no Brasil. E amo também como a música You’re On Your Own, Kid inspirou fãs ao redor do mundo a fazer as pulseiras da amizade, só por mencionar o objeto. E amo como fãs de Jão fizeram o mesmo, embora um artista não tenha nada a ver com o outro.
Li, ouvi e assisti
No momento, estou lendo Nimona, a HQ de Noelle Stevenson que inspirou a animação da Netflix, além de Garoto encontra garoto, de David Levithan, e Junho te trouxe aqui, de Ariel F. Hitz. Embora eu tenha estranhado um pouco os traços da HQ, a personalidade da Nimona tem me divertido ainda mais na leitura do que no filme. Não tenho muito o que dizer sobre o segundo livro, além do fato de que foi um grande hype no booktube 10 anos atrás, e que foi um dos primeiros livros que comprei quando decidi começar a ler literatura LGBT, uns seis ou sete anos atrás. Já o último, é um conto de romance que acompanha dois homens trans da infância à vida adulta, e estou gostando muito.
Fiquei a semana passada inteira ouvindo a setlist da Turnê Tempo Rei no Spotify. Entre os podcasts que ouvi, recomendo o último episódio do 30:MIN, Por que ler Ailton Krenak. Já estive frente a frente com o autor em questão e digo que deveríamos não apenas ler, como também ouvir suas palavras!

Dois dias após o envio da última news, fui ao cinema para ver Homem com H, a biografia de Ney Matogrosso estrelada por Jesuíta Barbosa. Só a presença do ator principal já tinha sido o suficiente para chamar a minha atenção pra esse filme - eu estava de olho em novos trabalhos dele desde que vi Tatuagem (2013), um filme queer que mexeu comigo. E a busca por liberdade e por ser quem se é foi uma coisa que marcou a trajetória de Ney Matogrosso e também o que fez com que eu me apaixonasse por Homem com H. O sucesso desse filme com o público tem motivado notícias nos principais jornais brasileiros, e se ele ainda está em cartaz em algum cinema da sua cidade, corra pra ver!
E por falar em filmes queer, eu venho há algum tempo mapeando todos que assisto em uma lista no Filmow. Há pouco tempo, decidi dar uma olhadinha e percebi que já tenho mais de 100 filmes LGBT listados, e você pode aproveitar para pegar dicas do que assistir. Tem pra todos os gostos: documentário, animação, biografia, faroeste, curta e longa metragem, filme lançado esse ano e filme dos anos 1930. Porque esse trem de ser LGBT não começou na semana passada. Você pode conferir aqui!
Por hoje é só!
Um abraço,
Lethycia Dias
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