Quem ouve aqueles a quem sempre se tentou silenciar? - Uma mulher que escreve #77
Sobre perspectivas na literatura e por que incomoda amplificar algumas vozes
Olá, pessoas que leem!
Acho que ainda não tinha me acontecido de enviar uma edição de Uma mulher que escreve no primeiro dia de um novo mês. Mas, aproveitando a oportunidade, quero dedicar esta edição a um assunto que volta-e-meia gera discussão na comunidade leitora.
Alguns anos atrás, eu percebi que boa parte dos livros na minha estante e dos livros que eu tinha vontade de ler eram escritos por homens, e a partir daí, minha vida como leitora nunca mais foi a mesma.
É claro que não percebi isso sozinha. Um texto no Facebook, um post no Instagram ou um vídeo de algum booktuber devem ter aberto meus olhos, mas eu já não me lembro como foi. O que importa é que a partir disso, comecei a fazer um esforço ativo para conhecer, comprar e ler mais livros escritos por mulheres, além de procurar conhecer mais escritoras contemporâneas e me informar sobre o que elas estavam escrevendo e publicando. E eu senti a diferença não só de temas abordados, mas também na identificação. Algumas das personagens femininas que li nos últimos anos pareciam tão reais quanto minha melhor amiga ou eu mesma, e algumas viviam e sentiam coisas muito parecidas com as que eu mesma passava.
O mesmo aconteceu quando senti a necessidade de ler livros escritos e protagonizados por pessoas LGBT, e o impacto foi maior ainda quando passei a procurar por livros com autoria e protagonismo negro.
A literatura é uma atividade que nos coloca em contato direto com o mundo do outro, mas às vezes, esse outro é visto sempre a partir de um mesmo ângulo, uma mesma foto feita com o mesmo enquadramento e iluminação, repetida por séculos. Não sobra espaço para pensar em nuances quando estamos acostumados a uma mesma perspectiva. Só quando muda a pessoa por trás da câmera é que conseguimos enxergar de outro jeito, às vezes vendo pela primeira vez a pessoa retratada como alguém com nome, pensamentos, sonhos, objetivos e individualidade. Sem parecer exótico, assustador ou simplório.
Foi o que eu entendi quando percebi que livros com personagens LGBT falavam diretamente com emoções minhas que eu não podia comunicar a ninguém; quando vi em Olhos D’água, da Conceição Evaristo, mulheres que eram parecidas com as mulheres do lugar onde eu moro. Quando li uma crônica de Cidinha da Silva sobre o contato com pessoas de classes sociais privilegiadas e entendi de imediato o sentimento de não ser bem-vinda em certos lugares que era narrado no texto.
A perspectiva é algo que muda tudo na forma de se contar uma história, e é isso que significa o tão mal compreendido termo lugar de fala. Porque de onde viemos, quem somos numa sociedade que hierarquiza indivíduos com base no gênero, classe social, raça ou etnia, orientação sexual, nacionalidade… Isso se reflete naquilo que dizemos e em como dizemos. Como diz Djamila Ribeiro em seu livro Lugar de fala…
O fundamental é que indivíduos pertencentes ao grupo social privilegiado em termos de locus social consigam enxergar as hierarquias produzidas a partir desse lugar, e como esse lugar impacta diretamente a constituição dos lugares de grupos subalternizados.
Acho que lugar de fala tem muito a ver com aquela frase que diz que mesmo que todos os temas já tenham sido escritos na literatura, só você pode contar a história que você imagina com a sua perspectiva, e que às vezes, é do olhar de quem escreve que vem a originalidade.
É por isso, entre outros motivos, que eu acredito tanto no meu romance a ponto de estar escrevendo a mesma história há mais de dois anos. Tem coisas que ninguém pode dizer pela gente.
Quais vozes estamos ouvindo?
Mesmo tendo deixado de produzir conteúdo sobre os livros que lia, eu nunca deixei de acompanhar influenciadores literários - até porque o trabalho deles é fundamental para quem escreve - e vejo repetidamente as pessoas se incomodarem com quem indica livros escritos por pessoas negras por achar que a pessoa que escreve não tem importância. “Eu não escolho pela cor, escolho pela história”, dizem essas pessoas, ignorando que já houve uma escolha prévia feita por quem publica, quem vende e quem divulga livros, e que, se você não faz a sua própria busca, acaba conhecendo e lendo só aquilo que já foi selecionado antes. Muitas vezes, só a perspectiva hegemônica.
E ainda há quem se incomode com vagas afirmativas, editoras focadas em literatura negra ou com uma simples lista de livros escritos por pessoas negras.
Andei pensando nisso porque, apesar de sempre ler autores negros ao longo do ano, todo mês de novembro eu tento ler ainda mais participando do #BingoLitNegra, um desafio criado pela escritora Solaine Chioro para ler livros com autoria e protagonismo negro nesse mês.
E também porque, há algumas semanas, o algoritmo da Amazon me mostrou o livro novo de Djaimilia Pereira de Almeida [não confundir com a Ribeiro, O que é ser uma escritora negra hoje, de acordo comigo, que reúne ensaios da autora de Esse cabelo e Luanda, Lisboa, paraíso. A escritora e jornalista Rachel Quintiliano fez uma ótima reflexão sobre esse livro numa edição recente de sua newsletter Pensamento antirracista, literatura e outras coisas.
Em algumas áreas do jornalismo, existe uma ideia meio errada de “dar voz” a quem não tem, como se, ao ouvir as pessoas contarem suas histórias e falarem de problemas sociais ou de traumas coletivos, nós estivéssemos fazendo a gentileza de “falar” por elas. Mas uma visão com a qual eu concordo muito mais é a de que todo mundo tem voz. O que muda é que só algumas poucas vozes costumam ser levadas em conta, enquanto as outras são sistematicamente ignoradas.
Quando vejo pessoas reclamando de quem busca divulgar literaturas (no plural mesmo) com as quais se identifica - e normalmente o que incomoda é falar de pessoas não brancas, fora da cis-heteronormatividade, ou que não vêm de certos países ou certas cidades -, é disso que eu lembro. É como uma tentativa de fazer com que essas vozes voltassem a ser ignoradas. Porque elas sempre existiram, só passaram um bom tempo não sendo ouvidas por boa parte das pessoas.
As últimas
Para atualizar a última edição, até que não foi difícil criar um novo ritual de escrita. Tenho escrito quase todos os dias no meu horário de almoço, depois de comer e antes de escovar os dentes para voltar à minha mesa.
Tenho conseguido entre 300 e 600 palavras por dia, e pra quem estava com medo de parar de escrever por ter começado a trabalhar de forma presencial, isso tá ótimo. Outubro foi o mês que mais escrevi esse ano, com mais de 7 mil palavras.
Quero manter o mesmo ritmo ou fazer ainda mais em novembro, então, decidi fazer o NaNoCLT, ideia do Koda G. para adaptar o NaNoWriMo para as pessoas que trabalham em horário fixo, andam de ônibus, cuidam dos afazeres de casa e ainda escrevem nas horas vagas. A meta é bem mais realista: 500 palavras de segunda a sexta, totalizando 11 mil palavras em um mês. Eu ficaria feliz produzindo tanto.
Clique aqui para acessar o calendário do Koda para um NaNo mais humilde.
Tenho usado os stories do Instagram para fazer comentários sobre meu avanço diário na escrita do romance, e estou muito empolgada por ter chegado ao primeiro ponto de virada na história, que vai mudar tudo para minhas personagens.
Cheguei a comentar na edição passada sobre fazer minhas personagens terem uma grande noite, e bem… Não vai ser de noite, mas vocês entenderam. Vai ser a primeira vez que insiro uma cena hot numa história e isso é desafiador pra mim. Eu gosto muito dessas personagens e do relacionamento delas, e elas vivem na minha cabeça há tempo demais para eu não deixar que outras pessoas deem uma espiadinha no que vai acontecer.
Li, ouvi e assisti
Minhas leituras andaram bem devagar na segunda metade de outubro, então continuo lendo Medo Imortal e Vampiros nunca envelhecem, e só estou perto de terminar o segundo. Li várias histórias interessantes nessa coletânea, provando que dá mesmo pra escrever muita coisa diferente sobre uma criatura tão presente na cultura pop. Um dos contos que mais me chamaram atenção era um tipo de manual de instruções para vampiros adolescentes indianos recém-transformados, cheio de críticas ao colonialismo britânico; outro tinha como protagonista uma garota que, quando humana, tinha uma doença degenerativa e que, tendo sido transformada após seu pai tentar matá-la para “encerrar seu sofrimento”, decidiu se vingar porque acreditava que ninguém tinha o direito de decidir por ela se sua vida valia a pena ou não.
Como eu disse acima, perspectivas diferentes das que estávamos acostumados.
Concluí a leitura de Misery: Louca Obsessão no último domingo, e preciso dizer que mesmo conhecendo os vilões de Stephen King e sabendo de antemão um pouco do que encontraria nesse livro, a reta final foi agoniante pra mim. Li as últimas 80 páginas em um dia só, desesperada para saber se o cara ia sobreviver e como.
Um podcast que comecei a ouvir recentemente é o Rádio dos poetas mortos, onde Milena Enevoada e Stefano Volp contam histórias reais sobre escritores já falecidos. O episódio 07 me deu alguns detalhes da vida familiar de Virginia Woolf que eu ainda não conhecia, e o Abafa nº 3 conta várias curiosidades sobre a vida de Agatha Christie.
Mantive a minha maratona de horror até o fim do mês, e finalmente assisti A hora do pesadelo (Hbo Max), além de reservar uma tarde para ver de novo Pânico I e IV, os meus favoritos da franquia (ambos pelo Globoplay).
Por hoje é isso.
Um abraço,
Lethycia Dias
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Obrigada por citar minha sugestão de leitura ❤️✊🏾
amei a newsletter, mas to comentando para dizer que também terminei Misery esses dias e estava agoniada sem saber como ia ser o final haha