Eu canto, você não: narrativas de amizade feminina - Uma mulher que escreve #93
Como Uma canta, a outra não (1977) abriu meus olhos para a falta de histórias sobre amizade feminina
Olá, pessoas que leem!
No início de julho, assisti a um filme que me deixou fascinada. Por coincidência, fiz isso na véspera do dia em que deveria ter enviado uma nova edição da news e fiquei louca para escrever sobre ele. Mas pela falta de tempo para refletir o suficiente e também pela minha preocupação cada vez maior em estudar para o Concurso Público Nacional Unificado, o CNU, não consegui escrever. Esta semana, talvez porque mais de um mês já se passou, e a prova, também, eu senti que finalmente conseguiria.
A edição de hoje não é uma resenha nem uma lista de indicações - embora eu recomenda muito que você assista ao filme, se puder - mas sim uma reflexão.
Em Uma canta, a outra não (1977), a adolescente Pauline se encontra por acaso com uma antiga vizinha e descobre que ela está passando por um grande problema. Suzanne é alguns anos mais velha e tem um relacionamento com um homem casado. Ela já tem dois filhos que mal consegue sustentar e não consegue emprego, e pior, está grávida de novo. Pauline, corajosamente, a ajuda a conseguir dinheiro para pagar por um aborto, e isso muda suas vidas a partir dali. Os pais de Pauline a expulsam de casa ao descobrir o que ela fez. O pai dos filhos de Suzanne comete suicídio e ela vai viver com os próprios pais numa fazenda no interior.
Alguns anos depois, as duas se reencontram em um protesto de rua pela absolvição de uma mulher que está sendo julgada por realizar um aborto, quando o procedimento ainda era um crime na França. Suzanne está acompanhada dos dois filhos, e Pauline, que agora usa o nome Pomme, está cantando junto com seu grupo de amigas artistas. A canção delas fala de emancipação feminina e me lembrou a letra de Pagu, da nossa Rita Lee. Elas trocam endereço e telefone e passam a escrever cartas uma para a outra, contando como foram suas vidas nos últimos anos e compartilhando entre si suas novas vivências.
Assisti a esse filme quando faltavam poucos dias para que ele fosse removido da Mubi, e só porque me interessava pelo aborto enquanto temática. O que eu não esperava encontrar na trama dirigida por Agnès Varda era uma história muito bonita sobre amizade feminina, sobre mulheres em busca de liberdade para si mesmas, e, o que acho o melhor de tudo: conhecer, descobrir e redescobrir a si mesmas. Fiquei impressionada com o quanto Pomme e Suzanne parecem mulheres reais, com várias dimensões, anseios e desejos; como cada uma permite à outra ser quem é de verdade com muitas diferenças entre si; e como aquele encontro entre as duas permitiu que elas se tornassem pessoas diferentes de quem eram antes, tornando-se quem realmente gostariam de ser.
A intensidade com que esse filme reverberou em mim me fez pensar no quanto boas histórias de amizade feminina me parecem raras na literatura e no audiovisual. Ana Paula Barbosa, no perfil Narrativa Feminina, no Instagram, confirma que não se trata apenas de uma impressão. Nesse vídeo, ela nos mostra como as princesas da Disney têm amizades com animais e objetos em histórias que quase sempre giram em torno do amor, enquanto as histórias da Disney e da Pixar com protagonistas masculinos são centradas na amizade. O exemplo que destoa é Red: Crescer é uma fera (2022), que dá destaque à relação de Mei Lee com as amigas ao mesmo tempo em que trabalha a relação dela com a mãe e o enfrentamento do trauma geracional vivido pelas mulheres de sua família.
Na minha infância e adolescência, eu fui socializada com várias das ideias que normalmente são ensinadas para mulheres e meninas em um mundo machista. Fui ensinada a pensar que outras mulheres são falsas e invejosas; que se você não tomar cuidado, vão “roubar seu namorado”; - pobres homens sem responsabilidade sobre os próprios atos - e que, se você e sua amiga falam mal de outra menina, quando você não estiver por perto, ela e a outra vão falar mal de você.
Quando aprendi que várias dessas ideias eram construídas e difundidas socialmente para incentivar a desunião e a rivalidade feminina, eu só me dei conta do quanto eram absurdas. O feminismo me fez ver que apoiar e ser apoiada por outras mulheres é uma das melhores coisas que podemos fazer pelas nossas vidas, principalmente quando sofremos com abusos e violência vindos de homens.
Um dos meus filmes favoritos é Thelma & Louise (1991) - curiosamente, escrito e dirigido por um homem - e nele, duas amigas estão viajando juntas quando uma delas sofre uma tentativa de estupro, seguida do assassinato do agressor, e o que deveria ser um final de semana divertido se transforma numa fuga desesperada da polícia. Um ponto forte do filme é quando Thelma quer procurar a polícia e dizer a verdade, e Louise argumenta que as pessoas não vão acreditar nelas. Frequentemente, os comentários nas redes sociais em relação a notícias sobre estupro e assédio mostram que só mulheres apoiam outras mulheres nessas horas.
Em muitos tipos de filme, mulheres passam por coisas triviais porém muito difíceis na vida real, como tentar se destacar no trabalho; ou mesmo coisas horríveis, como sofrer violência psicológica, ser perseguida por um assassino ou ser possuída por um espírito maligno que pode matá-la. E em muitas dessas narrativas, essa mulher ou precisa enfrentar tudo isso sozinha ou tem as pessoas ao redor, como a própria família, duvidando dela. Existe até mesmo um subgênero de filme que exalta essa mulher sozinha: nos filmes slasher clássicos, a final girl, isto é, a aquela que sobrevive por último, é a garota “diferente as outras”, a que não faz sexo. Eu fico imaginando como é ser perseguida obsessivamente por um assassino ao longo da vida, como Laurie Strode, da franquia Halloween, e não ter sequer uma amiga pra te dar um abraço, porque as amigas dela morrem todas no primeiro filme.
Talvez seja por isso que Uma canta, a outra não me impressionou tanto: Pomme e Suzanne foram unidas pela solidariedade em relação a dificuldades vividas particularmente por mulheres (não ter autonomia sobre o próprio corpo e depender financeiramente de um homem) e a amizade que cultivam ao longo da vida respeita as transformações pelas quais as duas passam e não é pautada pela forma com que as duas se relacionam com homens. Nenhuma das duas está interessada em performar aquilo que a sociedade lhes diz que devem ser, mas sim em ser elas mesmas, e isso lhes permite viver o afeto de uma pela outra de forma genuína. E isso é uma das coisas mais bonitas desse filme.
Algo parecido, mas em outra escala, acontece em Barbie (2023), quando a Barbielândia é dominada pelos Kens e as Barbies precisam se unir para recuperar o mundo que conheciam. Comentei o que achei do filme numa edição antiga de Uma mulher que escreve. Algumas das questões envolvendo amizade feminina e estereótipos sobre como mulheres se comportam umas com as outras são muito bem trabalhados em Meninas Malvadas (2004), em que a guerra de Cady contra Regina George começa por causa de Aaron, por quem as duas se interessam. Mas tudo o que Cady faz para se vingar de Regina, no fim das contas, só fortalece toda a cultura presente no colégio delas de julgar outras mulheres pela aparência e chamar umas às outras de vadia.
Enquanto pensava neste texto, fiquei tentando me lembrar de bons exemplos de histórias sobre amizade feminina, em meio a tantas histórias que nos pintam como mentirosas e ardilosas. Além dos filmes que citei acima, gosto muito da novela Lado a Lado (2012), em que o ponto central da trama era a amizade entre Laura e Isabel e a busca de ambas por liberdade. Um livro que li este ano também faz uma ótima abordagem: em Você por aqui?, de Ana Rosa e Wlange Keindé, Dandara e Simone foram amigas de Ensino Médio, mas se acabaram se afastando, e se reencontram quando Dandara faz um exame de ultrassom na clínica em que Simone trabalha. Ao longo da história, acompanhamos as duas recuperando o antigo companheirismo de antes enquanto suas vidas se modificam. Simone é uma mulher sáfica, e enquanto lia, eu tinha a expectativa de que Dandara (que namora um homem) se descobrisse também sáfica e terminasse namorando a amiga. Não foi o que aconteceu no final, e isso me deixou pensativa sobre como, até numa história em que foco é outro, esse repertório tão grande de histórias de mulheres em busca do amor pode nos levar a esperar que tudo se resolva com um relacionamento amoroso novo.
Eu também gostaria de destacar aqui a amizade entre Elena, Cecília e Margot no romance gótico Canção dos Ossos, de Giu Domingues, porque nem tudo são flores. Já no início da história, Cecília e Margot são as únicas pessoas a consolar Elena quando a mãe dela é executada após o julgamento por ter praticado um tipo de magia que era proibido. O estigma de filha de uma criminosa recai sobre Elena, que já sofria no Conservatório de Vermília por não vir de uma família rica e poderosa como todos os outros ali, e pouco depois, ela ouve as amigas falando mal dela, como se seu sofrimento não tivesse importância. Quando Cecília é promovida para uma posição na orquestra que Elena sonhava em ocupar, Elena deseja mal a ela, e posteriormente, ela e Margot falam mal de Cecília. O conflito vai crescendo conforme Elena tem acesso a um poder que antes desconhecia, e as coisas escalam de forma irreversível no final.
Fiquei muito impressionada com essa relação de amizade tóxica desde que percebi que Margot e Cecília não eram quem Elena acreditava no início, e gostei muito de ler os comentários feitos pela própria autora no ex-Twitter:
“Canção dos Ossos fala sobre um tipo específico de amizade feminina, que força suas integrantes a performarem um papel para serem aceitas pelo grupo. Muitas vezes, não é uma ou outra pessoa que é tóxica - e sim, a dinâmica em si, e todos que participam dela.
O mais difícil é que mesmo que você reconheça que a amizade não está funcionando, ainda assim o impulso maior é de se dobrar e se diminuir para caber naquele papel. Isso inevitavelmente gera ressentimento e raiva, sentimentos que mulheres não são incentivadas a expressar.
É isso que cria fofoca, falar mal pelas costas, descascar sua amiga pra outra amiga na esperança de que isso aumente o laço entre vocês e diminua a chance de você ser o próximo alvo. Mas essa história nunca tem final feliz - nem pra quem eventual e inevitavelmente é excluído...
E nem pra quem fica dentro de uma dinâmica que vai consumir às suas uma à uma, caso suas integrantes não refaçam esses laços sem serem contingentes à autodestruição mútua.”
Como se pode perceber, é algo que vai muito além de “suas amigas são umas falsas” e também é um efeito da forma que nós mulheres somos ensinadas a nos comportar.
Eu tive duas grandes amigas no Ensino Médio, e, embora as duas amizades já não façam mais parte da minha vida, elas me deixaram uma ideia potente para uma história sobre um grupo de amigas vivendo as coisas inesperadas que o início da vida adulta nos traz, e eu pretendo escrever sobre isso algum dia. E tenho certeza de que, quando esse dia chegar, as personagens da minha história serão muito mais parecidas com Pomme e Suzanne do que com os estereótipos em que fui ensinada a acreditar desde criança.
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Para quem é inscrito na news e está com medo de acabar esquecendo, vou enviar uma edição-extra no sábado relembrando!
Li, ouvi e assisti
Nas últimas duas semanas, terminei de ler os livros que citei na edição anterior e li por completo Um amigo do outro lado, de Carol Camargo, e Discurso de ódio nas redes sociais, de Luiz Valério Trindade. O primeiro é uma adaptação moderna de A princesa e o sapo (2009), onde Tiana vive numa comunidade quilombola ameaçada de expulsão de suas terras por pessoas poderosas que têm interesses econômicos na região e muita intolerância religiosa. Já Naveen é um advogado que ao assumir o processo de desapropriação das terras, começa a se dar conta de como está colaborando com uma grande injustiça. O segundo é parte da coleção Feminismos Plurais, e nele, o autor analisa como as redes sociais permitem e lucram com discursos de ódio e quais os fatores da nossa sociedade que dão origem aos ataques contra mulheres negras, conhecidamente as mais frequentes vítimas desse tipo de postagem.
Agora, estou lendo Recortes para álbum de fotografia sem gente, de Natalia Borges Polesso, e Uma oração para ninguém, de Larissa Brasil. Recortes é uma coletânea de contos curtos; o outro é um livro de suspense sobre Inaê, uma escritora que se isola numa casa de praia para escrever seu novo romance enquanto tenta se proteger de um stalker.
Ouvi a maravilhosa playlist maria bethânia pra chorar escorregando pela parede, cujo nome já diz tudo, e no momento, estou viciada no álbum Caju, o novo da Liniker.
Vi que outros filmes da Agnès Varda seriam removidos da Mubi e corri para ver Cleo das 5 às 7 (1962). Foi lindo. No último final de semana, assisti e amei Terra estrangeira (1995). Este está disponível no Globoplay e na Netflix. Depois de finalmente concluir a terceira temporada de Bridgerton, assisti ao spin-off Rainha Charlotte e achei uma história bem redondinha.
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Eu fico por aqui.
Um abraço,
Lethycia Dias
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Eu não sou uma boa assistidora, e definitivamente não sou uma assistidora cult, mas desenvolvi uma afeição pela Agnes Varda lendo a newsletter da Michelledas5as7 kkk
Realmente tem mais obras sobre homens tendo amigos homens do que sobre mulheres tendo amigos de qualquer gênero, mas eu sinto muita falta de obras sobre amizade em geral. Tipo, amizades se desenvolvendo, e com seus altos e baixos, não um grupo de amigos que já existe de forma relativamente sólida e vai lá salvar o mundo, por exemplo. Tipo uma... romantasia platônica. Porque uma fantasia normal com um subplot de romance não conta, o romance tem que ter foco, certo? Pois bem, é isso que eu quero, só que com amizade. Quando fala de found family quase todas as histórias são sobre o período deles se "finding", mas quase nunca sobre o período deles sendo "family". Eu espero que conforme vamos explorando cozy/slice of life surjam coisas desse tipo.