"Viver da minha arte" - Uma mulher que escreve #84
Coisas que você, jovem artista, deveria pensar antes de pedir demissão ou parar de enviar currículos
Olá, pessoas que leem!
Se você chegou aqui pelo título esperando que eu conte como faço pra ganhar o suficiente para viver só com os meus livros, sinto muito, esse não é o assunto. Se você já me acompanha, sabe bem que eu não tô nem perto de ganhar isso tudo pelo KDP da Amazon.
Acontece que nos últimos dias, vi vários colegas de escrita e também ilustradores e outros artistas falando do nosso eterno conflito entre precisar de um Emprego de Pagar as Contas e não querer fazer mais nada além da nossa arte, e como, às vezes, a única forma de continuar sendo artista é tendo um emprego “normal” e seguro.
Eu explico: alguns dias atrás, uma pessoa no Twitter contou que andava vendo com frequência outras pessoas aconselharem jovens artistas a “focar só na arte”, desencorajando a busca por emprego formal. Deixo um print abaixo para vocês conferirem:
Como o próprio Caio disse, não é todo mundo que pode fazer essa escolha, e foi por isso que uma galera começou a dar os próprios conselhos explicando como é difícil viver de arte e que o caminho seguro é mesmo garantir o salário na conta para, quando quem sabe você estiver ganhando bem com seus desenhos ou artesanatos ou livros ou o que for, aí sim você poder pensar em pedir demissão.
Não preciso nem dizer o quanto isso mexe comigo, não é? Afinal de contas, passei os últimos dois anos e meio buscando exatamente isso: aquele emprego que pudesse me dar a tranquilidade dos boletos em dia, para aquietar a minha ansiedade e me deixar escrever em paz.
Eu chego a achar curioso que alguém aconselhe outras pessoas a fazerem o contrário disso, porque achava que todo mundo sabia como é difícil pagar as contas com arte. Desde que me lembro, eu meio que já sabia que precisaria de um “emprego normal” se quisesse mesmo ser escritora. Meus pais sabiam e me incentivaram a fazer faculdade por causa disso. Eu sempre entendi a escrita como uma coisa que teria de ser paralela, equilibrada em uma rotina de trabalho, compromissos pessoais, trabalho doméstico e diversão.
Eu estava desempregada e tinha acabado de ser dispensada de um freela, que até então era minha única fonte de renda, quando publiquei Mesmo que eu vá embora em 2019. Meu primeiro pagamento de royalties pelo conto, recebido em outubro daquele ano, foi de apenas R$ 39,79. Eu não tinha a menor condição de achar que já podia parar de procurar emprego!
E se tem uma coisa que aprendi naquele período, durante o ano inteiro que passei enviando currículos depois de me formar em Comunicação, é que quanto menos dinheiro você tem, mais importante ele se torna.
Pode parecer engraçado ler que Edgar Allan Poe publicava um conto novo a cada vez que precisava pagar a dívida do bar, ou que antes de publicar Carrie, Stephen King enviava uma história curta para uma revista toda vez que as contas ficavam apertadas em casa (ele e a esposa já tinham três filhos!). Mas a verdade é que não é nada legal quando o cartão de crédito começa a cobrar juros ou quando você escolhe a marca mais barata de tudo no mercado e ainda não dá pra comprar tudo da lista, ou quando você nem dorme mais direito de tanto pensar em dinheiro.
Não é legal quando seu único pagamento no mês é menor do que a mensalidade da Netflix. Eu garanto.
Por isso, se você é um jovem padawan que gosta muito de desenhar ou de escrever ou faz zines, pintura, bordado, enfim… qualquer coisa do tipo, quero te dizer o quanto pode ser perigosa essa ideia de não ter um emprego e te dizer algumas coisas que talvez te ajudem.
Em primeiro lugar, não estou dizendo que a sua arte não é trabalho. Eu sei bem que é e odeio quando deslegitimam o que fazemos. Mas, num mundo capitalista, o que importa de verdade é um trabalho que garanta o carrinho cheio no mercado; as contas e impostos em dia; e algum dinheiro sobrando pra você poder se divertir. Se esse trabalho te der também um plano de saúde e um bom vale-alimentação, melhor ainda! Isso hoje em dia vale mais do que ouro.
Quando você tem esse tipo de coisa, você para de pensar tanto nas necessidades mais imediatas, como ter o que fazer no almoço de amanhã e continuar tendo onde morar, e pode começar a pensar em coisas novas, tipo: comprar roupas mais legais; trocar a ração do gato por uma melhor; comprar um notebook novo; fazer cursos ou aprender um idioma; investir em materiais de trabalho melhores; planejar uma viagem.
Uma coisa que fiz quando entrei num emprego que parecia que ia durar mais tempo foi começar a trocar minhas roupas. Quando comecei naquele lugar, eu mal tinha roupa boa pra vestir no trabalho, e fui pouco a pouco comprando calças, blusas, lençóis, toalhas e até roupa íntima. Hoje em dia, só me restam dois lençóis ruins dos quais ainda quero me livrar.
Um emprego de carteira assinada te dá algumas seguranças, como o FGTS que vai rendendo de pouquinho em pouquinho ou o seguro-desemprego, pro caso de te demitirem sem justa causa. Eu vivi de seguro-desemprego por quatro meses em 2022 enquanto fazia o meu freela da Bienal, e consegui juntar os pagamentos desse trabalho numa reserva de emergência que acabou salvando a minha vida no ano passado, quando desisti de trabalhar para empresas privadas para passar meses só estudando para concursos. Mesmo assim, não foi fácil: eu vivia preocupada com dinheiro e só consegui ficar tranquila de verdade quando voltei a trabalhar.
Até a minha escrita foi afetada nesse período. Eu não precisava acordar cedo pra pegar ônibus, mas levantava às 6h todo dia pra poder escrever antes de ter que lavar louça, varrer a casa, criar conteúdo para divulgar meus livros e estudar. Eu reservava uma hora por dia pra escrever, e às vezes, não conseguia colocar uma palavra no Google Docs. E quando comecei no emprego atual, finalmente tendo a certeza de um salário pago no mês seguinte e pouquíssima chance de demissão, me surpreendi com o ritmo acelerado com que passei a escrever, somando mais de 30 mil palavras escritas em um período de três meses. Que tempo eu reservo pra isso agora? Só metade do meu horário de almoço.
O mito do artista sofredor é bonito, mas nada é melhor para criar a sua arte do que estar bem física e mentalmente.
Ok, você já entendeu a importância de trabalhar pra alguém ou pra uma empresa, certo? Mas no quê? Eu deixo aqui as dicas de Austin Kleon, o autor de Roube como um artista, que diz nesse livro:
Ficar livre de estresse financeiro também significa liberdade para a sua arte.
Quote da página 131
A pior coisa que um emprego faz é tirar seu tempo, mas ele recompensa ao dar uma rotina na qual você pode reservar um horário fixo para suas buscas criativas. (…) A inércia é a morte da criatividade.
Quote da página 132
Com base na minha experiência, digo que se o seu trabalho não destruir a sua saúde mental, já tá bom demais.
O truque é encontrar um emprego fixo que pague decentemente, não o faça querer vomitar e o deixe com energia suficiente para fazer coisas no seu tempo livre.
Quote da página 133
E, se a sua lojinha no Instagram começar a vender bem a ponto de você achar que seu emprego está te tomando um tempo que você precisaria para responder os clientes, embalar os pedidos e ir no Correio; se você está ganhando mais do que esperava e acha que já dá pra abrir mão do salário…
Eu não tenho experiência nessa parte, nunca cheguei nela, mas as pessoas que acompanho que chegaram sempre recomendam agir com cautela. Monte uma reserva de emergência, com o valor equivalente a pelo menos seis meses das suas despesas. A Nath Finanças ensina como nesse vídeo aqui.
Não vale ficar 100% na informalidade, então procure saber como se cadastrar enquanto MEI ou PJ na sua cidade, e calcule se você tem como pagar os impostos de cada categoria. Pesquise também sobre como contribuir com a Previdência Social como autônomo, pagando o boleto do INSS todo mês. A gente brinca sobre nunca poder se aposentar, mas você não vai querer que isso realmente aconteça, né?
Contribuir com a previdência ainda trás uma série de benefícios mesmo pra quem não trabalha de carteira assinada, como auxílio-doença, auxílio-acidente e salário maternidade. Se você é uma pessoa com útero e algum dia engravidar, pode receber um benefício equivalente ao salário mínimo por alguns meses. A Karen Santos, que é escritora e teve seu primeiro filho no ano passado, explicou como nessa thread no Twitter.
Ainda acho que existem algumas coisas que você precisa se perguntar antes de pedir demissão, como: se o valor do seu aluguel aumentar, você consegue continuar pagando, ou precisaria se mudar pra um lugar mais barato? Se o seu pet adoecer, você consegue pagar o veterinário sem fazer uma vaquinha online? Se você ficar doente e não puder trabalhar por duas semanas, quanto vai te fazer falta o dinheiro que você ganharia nesse período?
Eu jamais saberia lidar com esse tipo de instabilidade, e por isso é que procurei o tipo de trabalho conhecido por ser o exato oposto. Não estou dizendo que fazer concurso público é a solução pra todo mundo, mas existe um motivo pelo qual vários escritores brasileiros consagrados, do século passado e de hoje também, foram e são servidores públicos. É tranquilidade que chama. Eu só comecei a desfrutar da minha no ano passado, e não quero nunca voltar a viver como antes.
As últimas
Estou no sétimo capítulo do haters to lovers universitário, com cerca de 9 mil palavras. Escrever essa história me diverte porque o hate entre as personagens principais não passa de uma picuinha alimentada por diferença de personalidade e por muitas suposições de uma sobre a outra. E também porque me faz lembrar do meu próprio tempo de universitária, quando minhas maiores preocupações eram atingir o total da carga horária do curso e garantir um lugar no 105 pra poder dormir no caminho de volta pra casa, de preferência na sombra.
Minhas personagens são mais novas do que eu: entraram na UnB em 2016, vão concluir o curso em 2019 - antes da pandemia, porque sou boazinha - e a história se passa em 2017. Um ano antes da minha viagem pra um evento acadêmico que inspirou essa história.
Thaize, a narradora, tem opiniões fortes demais sobre tudo, tipo achar que atividades como atlética são perda de tempo. Ela não sobreviveria a um semestre na FIC, a Faculdade de Informação e Comunicação da UFG, onde eu estudei. Já Marcela, minha afropaty favorita, tem coisas que eu nunca tive, como dinheiro pra mudar de cabelo a cada estação e um carro próprio pra poder ir pras aulas. O que elas têm em comum é o respeito por competições justas e o fato de serem mulheres negras e não-hétero.
Eu e minhas colegas de antologia investimos em ilustrações das nossas personagens em De todas as paradas do mundo e estamos revelando as artes pouco a pouco no nosso Instagram. Até agora, quatro já foram publicadas, e a de Alana e Dom, o casal do meu conto Liberdade e Acaso, é essa aqui. Não ta linda?
Se eu fosse você, correria até o Instagram do nosso livro pra conferir as outras!
Li, ouvi e assisti
Depois de Até o amanhecer, li também mais três contos carnavalescos. Foram eles: Uma história de Carnaval, de Nathalia Cabral, Joquempô, de Marta Vasconcelos e Era Sol Que Me Faltava, de Lelê Alves.
Depois desses, comecei a ler Sal e Açúcar, um romance entre herdeiros de padarias rivais com uma rixa familiar que atravessa gerações ambientado em Olinda. Essa história tem uma oralidade deliciosa, me faz rir demais com as brigas entre os personagens e me deixa com fome o tempo todo!
Sigo lendo Amélia Sem Filtro e Número Zero, ambos bem lentamente.
Passei dias ouvindo a maravilhosa playlist R&B Contemporâneo, feita pela escritora Gabriela Araujo. É uma seleção delicinha com quase 100 músicas de artistas negros. Agora, estou ouvindo a playlist personalizada do Spotify com as minhas mais ouvidas de 2022. Nada mais seguro do que o meu próprio gosto musical.
Em matéria de podcast, curti muito o episódio da semana passada do Esqueletos no Armário, que falou de pornochanchadas de terror (algo que eu nem sabia que existia). É um prato cheio pra quem gosta de cinema brasileiro e não tem moralismo. Ouça aqui.
Minha maratona do Oscar continua no espírito “devagar se vai ao longe”. Vi Anatomia de uma queda e curti muito, além de achar angustiante todo o processo judicial que o filme retrata. E Meu amigo robô, que concorre a melhor animação, me deixou com o coração despedaçado. Recomendo os dois!
Também tive tempo de ver alguns filmes preciosos que infelizmente já foram removidos da Mubi, mas se vocês quiserem procurar nos meios alternativos, são: Os guarda-chuvas do amor (um musical francês sobre um casal separado por uma guerra); Charada (Audrey Hepburn como uma esposa troféu tentando desvendar o mistério de um roubo feito por seu falecido marido, cujo produto os antigos parceiros de crime dele querem recuperar); e Só ao meu desejo (um romance entre duas strippers que me surpreendeu em TUDO, do início ao fim). Esse aqui é uma das coisas mais lindas que já assisti.
Eu fico por aqui.
Um abraço,
Lethycia Dias
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